O SONHO IMPERIAL PORTUGUÊS NO SÉCULO XVI
Ricardo Hiroyuki Shibata
Era comum
que as novas dos feitos portugueses fossem seguidas na Cúria romana por
comemorações públicas de pompa, isto é, com festas, procissões, missas solenes
e diversos tipos de pregação, bem como a divulgação pela imprensa das cartas da
chancelaria portuguesa que davam a conhecer à Europa as conquistas sobre os
infiéis. Como diz Nair Soares, isto contribui para a criação de toda uma
atmosfera utópica refletida nas letras e artes, de autores nacionais e
estrangeiros. As vitórias portuguesas no Oriente levaram frei Egidio da
Viterbo, pregador do papa Júlio II, a afirmar, em 1507, que desejava ser
português (SOARES, 2003, p.590). Segundo O’Malley, a fonte imediata de Viterbo
fora a carta de D. Manuel (Abrantes, 25 de setembro de 1507), em que se
relatava a conquista do Ceilão, Calicut e Madagascar, e que Viterbo
interpretara como signo do cumprimento das profecias bíblicas acerca do
Apocalipse e do retorno do Messias. Após uma longa dissertação teológica sobre
as quatro Idades de Ouro do mundo (Lúcifer, Adão, Janus e Cristo), determina
que os feitos de D. Manuel e o pontificado de Júlio II corresponderiam ao cumprimento
da profecia do Salmo 18-19.5, em que o império cristão chegaria até o fim do
mundo para proclamar a mensagem de Deus a todos os homens através de um rei
predestinado (Isaias 7.14) (O’MALLEY, 1969). Fato corroborado por João de
Barros:
“Parece (...)
ser comprida a profecia do Salmo que diz que os estrangeiros e Tiro e o povo
dos Etíopes conheceriam a Deus. E pode-se dizer que seu nome lhe foi posto por
divino mistério, como lemos de alguns santos barões cujas futuras obras,
conhecidas por Deus, lhe deram nome, conforme ao que eles haviam de obrar.
(...) E o Messias, prometido na lei, já tinha seu nome escrito nos livros de
Isaías, que disse: ‘Manuel se chamará’, que em nossa língua quer dizer: ‘Deus é
conosco’, pela vinda que fez a este mundo, onde tomou carne humana, por nos
remir do pecado de nosso primeiro pai adão. Pois assi mesmo eu diria que este
cristianíssimo rei Emanuel levou à India e Etiópia sua Fé, com que os infiéis
com muita razão lá podem dizer: – Deus é conosco”. (BARROS, 1943, pp.170-171)
A assunção
de que Portugal vivia uma Idade de Ouro também fora dado pelas informações
saídas da própria chancelaria régia portuguesa, pela troca de informações entre
os comerciantes e navegadores em Lisboa ou Flandres, e pelo interesse dos
humanistas que viam nos empreendimentos portugueses a superação dos feitos
grandiosos da Antiguidade Clássica. No entanto, no cerne da questão permanecia
a idéia de que Portugal empreendia a defesa e expansão da fé cristã e da
“Respublica Christiana”, e a guerra contra a ameaça muçulmana, quer no norte da
África quer no Índico ou no Mar Vermelho; esta era, sem dúvida alguma, a tópica
central dos discursos obedienciais desde pelo menos D. Afonso V. De Vasco
Fernandes de Lucena a Aquiles Estaço, a contribuição da Providência Divina
sempre fora importante; o signo de Ourique e sua ligação com a fundação do
Reino era a bandeira sob qual lutavam os lusitanos para vencer tantos
obstáculos; vitórias celebradas em Roma com entusiasmo nunca antes visto.
Em 1511,
dera-se a conquista de Malaca (Áurea Quersoneso), por Afonso de Albuquerque. D.
Manuel, em carta (Roma, 9 agosto de 1513) comunicava essa façanha ao papa Leão
X, que em Roma celebrou a importância do evento (MATOS, 1984, pp.397-418;
CASTRO, 2002, pp.15-37; BARROS, op.cit., p.171). Malaca era ponto estratégico
para o comércio nas Índias, pois era o “empório muito célebre, onde afluem não
só variados perfumes e essências de toda a espécie, mas ainda grande quantidade
de ouro, prata, pérolas e pedras preciosas” (IDEM, IBIDEM, pp.8-9). Porém, D.
Manuel ressaltava a substituição de um potentado muçulmano por um cristão, os
novos pactos de amizade com mercadores estrangeiros e a prestação de vassalagem
dos poderes locais ao rei português. Em verdade, para o rei, Malaca fora
libertada (e não conquistada) aos mouros que tiranizaravam o povo daquela
cidade, usurpando-a do rei do Sião; este, por sua vez, havia cedido a
soberania, não só de Malaca, mas de todo o seu reino, aos portugueses em
“reconhecimento e de verdadeira e perpétua amizade”. Além disso, os reis de
Narsinga, Cambaia e tantos outros voluntariamente cederam sua soberania e
elegeram D. Manuel como seu protetor e rei legítimo a fim de, com o auxílio do
Preste João, combaterem a ameaça muçulmana. (IDEM, IBIDEM, pp.20-23)
A idéia de
um império universal era um argumento freqüente do pensamento humanista,
atrelando o governo do “Senhor de todo o mundo” com a instalação definitiva da
paz e do retorno da Idade de Ouro. O marco histórico dessa “renovatio” foi o
ano de 800 com a sagração de Carlos Magno como imperador, pelo papa Leão III,
nomeando-o defensor da civitas Dei e
responsável pela difusão da mensagem cristã para todo o orbe. Com o advento de
Frederico II, a idéia imperial retoma fôlego, com essa “renovatio” apresentando-se
sob duas coordenadas: feudal e cavalheiresca; e legal, filosófico e teológico.
A partir daí, houve pela Europa, uma ferrenha discussão acerca dos aspectos
particulares desse “novo tempo”, que envolveram nomes do peso, como os de
Dante, Santo Tomás, Petrarca, Lorenzo Valla, Leonardo Bruni, Maquiavel, Erasmo
e Antonio Guevara, dentre outros. No horizonte dessas especulações estavam os
argumentos exegéticos da Patrística e as glosas à écloga IV de Virgílio,
conforme a intervenção da Providência Divina em fornecer para a história humana
sinais incontestes do fim dos tempos
(YATES, 1975, p.4; POCOCK, 1997, p.116s).
A
realização das esperanças dessa monarquia universal arrebatou a Carlos V,
sobretudo porque compreendia o argumento de que o advento dos novos tempos
passava pela reforma da Igreja, além das já mencionadas expansão da fé
(inclusive no Novo Mundo) e luta contra os infiéis. Uma extraordinária
concatenação de circunstâncias indicava que a Providência Divina concorrera a
seu favor. Era o detentor da coroa imperial; herdara territórios por toda a
Europa, o que lembrava o Império Romano; e nascera num tempo em que novos
mundos eram descobertos (YATES, 1975, p.25).
Um exemplo
de como Carlos V pensava seu “sonho imperial” é o da imagética da representação
de seu poder quando de sua ascensão ao trono espanhol em 8 de setembro de 1517.
As velas do barco em que estavam o rei e sua corte traziam em estampa a figura
de Cristo crucificado entre a Virgem Maria e S. João Evangelista, e todos eles
emoldurados pelas colunas de Hércules,
com a divisa “Plus Oultre”. Essa divisa fora concebida em resposta ao emblema
tradicional, formulado por Alciato, “Nec plus ultra”. De fato, em 1516, Luigi
Marliano, cavaleiro do Tosão de Ouro, exalta o jovem príncipe, cuja obrigação
seria transformar-se num “novo Hércules” para suportar o peso de ser “senhor de
Espanha (...) de Nápoles, da Borgonha, da Bélgica, de uma parte de África e das
Índias” e trazer a paz definitiva à Europa. Um pouco depois Gómara, na
“História das Índias” (c.1552), diz que a maior de todas as coisas depois da
criação do mundo, excluindo a encarnação e morte de Cristo, é a descoberta das
Índias, e lembra que este prodígio fora reservado a Carlos V. (BATAILLON, 1960,
pp.13-27)
Esse mesmo
“ethos” imperial fora assumido por D. Manuel I, rei de Portugal. Sua ascensão
ao trono, depois de seis pretendentes na linha sucessória terem
surpreendentemente falecido (RESENDE, 1909-1912, v.I, cap.XXVII), era
considerada sinal da tarefa divina que deveria desempenhar, ou seja, da luta
contra os inimigos da fé cristã; e, por sinal, seus preceptores e conselheiros
de confiança (Duarte Galvão, por exemplo) fizeram esforço inigualável para que
essa idéia vingasse (RESENDE, 1994, p.547, est.47). De fato, é um equívoco
quando os historiadores modernos se referem à conquista militar da Ásia como
projeto de D. Manuel, isto se deveu, antes de tudo, às ações de Afonso de
Albuquerque, que conquistou Ormuz, Goa e Malaca sem que fosse esse o objetivo
para o qual fora instituído como capitão da armada portuguesa na Índia. As
cartas de Albuquerque testemunham longas explicações acerca de seus próprios
feitos e de como trouxeram glória na expansão da fé (Cf. NOONAN, 1989). Para
ele, era impossível arremeter-se contra os muçulmanos – essa era a ordem
inicial do rei – sem uma base sólida de apoio na Índia, além do que
economicamente o comércio da rota do Cabo trazia poucos dividendos, preferindo
o comércio regional e de cabotagem.
No
entanto, D. Manuel parece ter se convencido dos argumentos de Albuquerque. Em
carta a D. Fernando, rei de Aragão (Lisboa, 21 de junho de 1511), o rei
português explica que a tomada de Goa por Afonso de Albuquerque deveu-se ao
fato de a frota muçulmana estacionada no Mar Vermelho ter como base de apoio
aquela cidade indiana, colocando em perigo as possessões portuguesas (D.
MANUEL, 1968, p.39).
Em
verdade, o espírito pragmático de Albuquerque tinha seu contraponto no sonho
imperial manuelino, que provavelmente assumiria o título com a conquista
portuguesa de Jerusalém. Sua intenção não era ter a soberania da Ásia, mas
apenas a suserania, como tantos reis e imperadores medievais o fizeram na
Europa, cobrando tributos e estabelecendo laços de parentesco com as elites
locais. A missão universal de paz e justiça com a expansão da fé cristã
compreendia a expansão marítima e o comércio como um meio e não como um fim.
Esse é o
sentido da “Gesta proxime per Portugalenses in India, Ethiopia et aliis
orientalibus terris” (Nuremberg, 1507) – de fato uma “carta de novas” de D.
Manuel I ao bispo do Porto – na qual se narram os feitos de D. Francisco de
Almeida, em 1505, conquistador de vários potentados e cidades indianos. Nela,
exaltam-se os feitos portugueses nos “confins do mundo” e a aniquilação dos
inimigos da fé, anunciando a vinda dos novos tempos e o cumprimento da profecia
do profeta Ezequiel.
São bem
evidentes tantos e tão grandes desasatres e incêndios dos Sarracenos na Etiópia
e na Índia: não se devem ao acaso nem a mera vicisitude, mas aos desígnios e
manifesto juízo de Deus. E não deixarão de se cumprir cabalmente os vaticínios
do Apocalipse sobre a repentina destruição de Babilônia e desvio dos recursos
orientais das mãos do seu comércio. (D. MANUEL, 1958, p.51)
Em nenhum
lugar esse sonho imperial e profético é tão evidente quanto na “Carta das nouas
q[ue] vieram a el Rey nosso senhor do descobrimento do preste Joha[m]” (Lisboa,
1521), em que se informa a D. Manuel que Diogo Lopes de Siqueira fez contato
com o Preste João (CORTESÃO & THOMAS, 1938, p.97). Ao chegar enfim a essas
terras, ligando as duas pontas da Cristandade (a Ocidental e a Oriental) para
combater os muçulmanos, reconhece-se o cumprimento de antigas profecias
disseminadas não só em Portugal, mas também, e de modo surpreendente, nos
próprios cristãos daquela região do orbe, evangelizados (acreditava-se) por São
Mateus. De fato, os portugueses reconheciam nos cristãos do Preste João as
tribus perdidas à época da diáspora judaica e que retornariam
providencialemente ao grêmio da Igreja (IDEM, IBIDEM, p.112). Essa grandiosa
tarefa coube ao rei português D. Manuel, que nada mais fez do que levar a bom
termo o que seus antecessores haviam a tanto almejado.
O relato
da carta propõe que as conquistas e o comércio portugueses, e, com isso, toda a
expansão no ultramar em direção à Índia, foram dadas não com vistas ao
empreendimento econômico, mas por justo dever católico de peregrinação
(“Romaria”, diz a carta), a fim de “pera que ajuntando se ambos em huu[m]a
vontade contra os Jmygos da fee: se conseguisse todo Acrecentamento della [e]
vniversal perdiçam da maa. seyta de Mafamede”. Assim, os empreendimentos de D.
Manuel são motivados verdadeiramente “por que seja feyto huu[m] soo curral [e]
huu[m] soo pastor” (IDEM, IBIDEM, p.122), ou seja, o lema imperial “unus pastor
et unum ovile”, retirado do Evangelho de S. João 10.16.
Por sua
vez, o Preste João, em carta a D. Manuel, ao saber do projeto português, afirma
sua disposição de colaborar com “tantos mãtimentos como os montes [e] assy vos
dariamos gentes tantas como as areyas do maar”. Isto é, o plano era aliar o
poderio lusitano no mar com a força dos exércitos do Preste em terra para
cercar e dar combate aos mouros por todos os lados, derrotando-os
definitivamente, através do suporte material na Índia dado pelas possessões do
Preste e pelo estabelecimento de aliança de amizade (inclusive de matrimoniais,
como costumava ser) (PRESTE JOÃO, 1938, pp.123-124).
A
finalidade, partilhada amplamente pelo conselho régio de D. Manuel, como
demonstra Luis Thomaz, era a crença messiânica e do sonho milenarista da queda
iminente do “Sultanato de Babilônia” referido no Apocalipse de São João. O
evangelho descreve a revelação do Anjo divino do futuro e descreve a “rameira
da Babilônia”, sedenta de sangue dos santos e dos mártires de Jesus, guardada
por uma Besta terrível. Trata-se obviamente da Roma imperial e da figura de
Nero. Após a queda da “rameira”, os santos se regozijam no Céu, enquanto a
Besta e seus asseclas serão lançados ao fogo dos infernos. Então, Lúcifer será encarcerado por mil anos, dando início ao
reino messiânico. Depois disso, Lúcifer será libertado e Gog e Magob reinarão
sobre a terra. Enfim, o Cordeiro de Deus vai se conjugar com a nova Jerusalém
celeste, e assim uma nova criação vai se produzir com a vinda da nova terra e
dos novos céus.
Essa mesma
concepção, de que o Apocalipse sinaliza o fim dos tempos e a (re)aparição de
Cristo com a instalação definitiva da Jerusalém celeste, comparece no
“Apocalipse de Lorvão”, manuscrito da época de D. Sancho I (1185-1211), filho
de D. Afonso Henriques. A matriz, como se sabe, são as visões apocalípticas de
São João, prefiguradas nas visões dos profetas do Antigo Testamento (Isaías,
Jeremias, Ezequiel e Daniel), cujos comentários pelo beato de Liébana (século
VIII) foram muito difundidos durante toda a Idade Média. Mais próximo do
sentido literal dado pelo evangelista João, o manuscrito de Lorvão trata, no
Livro IX (fols.185v-192r, correspondendo ao “Apocalipse” XVII.1-18), do
julgamento da meretriz, que tem na cabeça escrito: “Babilônia, a grande, a mãe
das meretrizes e das abominações da terra”. Aqui, a história do julgamento da
grande meretriz, que está sentada sobre a besta de sete cabeças, sobre sete
montes, com a qual se prostituíram os sete reis, em realidade, repete a
explanação dos Anticristos do Livro VI (fols.152r-170v, correspondendo ao
“Apocalipse” XI.19, XII.1-18, XIII.1-18, XIV.1-5) com os nomes dos sete
imperadores romanos que martirizaram os cristãos. É contra eles que investirá o
Cordeiro de Deus a fim de provar que “é o senhor dos senhores e o rei dos reis”
(EGRY, 1972).
A leitura
que o círculo mais próximo ao monarca português realizou dessa passagem bíblica
interpretava a “rameira” com o sultanato muçulmano e reconhecia em Portugal, o
reino escolhido para levar a cabo a construção da nova idade. Aqui,
agregavam-se diversos fatores históricos, elaborados desde a própria ascensão
da dinastia de Avis ao trono português. Basta apenas referir que Fernão Lopes
dissera que D. João I era o “messias de Lisboa”; Rui Pina revelara que uma das
causas dos empreendimentos henriquinos no ultramar era buscar aliados (o Preste
João, no caso) contra o perigo muçulmano; e o degredado da expedição de Vasco
da Gama referira que os portugueses vieram às Índias buscar cristãos e
especiarias (THOMAZ, 1990, pp.35-103).
A poesia
de corte também se nutria desse mesmo sentido apologético e messiânico, cujo
elogio hiperbólico do monarca e de sua glória imorredoura, dava-se pela
submissão de todo o Oriente e pelo louvor a Lisboa, cidade superior a Damasco,
Cairo e Tróia. O enorme afluxo de riquezas e a prosperidade material se faziam
em nome da unificação do mundo (a descoberta de novos povos que D. Manuel fará
cristãos e a derrocada definitiva dos árabes – dos “soldados de Isamel”). Com
Jean Delumeau, o objetivo era reconciliar a toda a humanidade (transformá-la
numa só, numa mesma “respublica christiana”); um tempo de prosperidade e paz,
mas que demandava uma visão grandiosa fundada numa forte tradição de sonhos
milenaristas (DELUMEAU, 1997, p.225). Foi a partir da subida de D. João III ao
trono português que o comércio de especiarias recebeu contornos definitivos de
Cruzada, estabelecendo a impressão de continuidade com as ações do reinado
anterior (THOMAZ, 1994, pp.189-206).
D. Cristóvão da Gama,
quarto filho de Vasco da Gama, fora enviado em socorro do rei da Etiópia
assacado pelos mouros, cujo relato escreveu Miguel de Castanhoso, em 1564.
Castanhoso refere-se muitas vezes aos feitos de armas de D. Cristovão,
comparável aos de Aníbal e daqueles do “tempo dos Romanos” como “tão sancta
demanda”, que o levara ao cativeiro e depois à morte nas mãos dos infiéis, no
dia 28 de agosto de 1542, providencialmente dia da degolação de São João
Batista (CASTANHOSO, 1983, pp.50-51). Naquele ano de 1542, ficava claro que o
Preste João não era tão poderoso, nem tão rico, e que suas terras eram menos
paradisíacas, como dizia o imaginário das versões medievais (PRESTE JOÃO,
1998), e que as profecias da vitória sobre os muçulmanos através da união das
Cristandades Ocidental e Oriental estavam longe de se concretizar – muito
distante, portanto, do que a “Verdadeira Informação das terras do Preste João
das Índias” (1540), de Frei Francisco Álvares, veiculava (ALVARES, 1974).
Referências
RICARDO
HIROYUKI SHIBATA é Doutor em História/Teoria Literária (Unicamp/Universidade
Nova de Lisboa), Pós-Doutor em História da Cultura (UFPR) e Professor Adjunto
do Delet/UNICENTRO (Departamento de Letras/Universidade Estadual do
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Caro Prof. Ricardo
ResponderExcluirPrimeiramente, parabéns pelo texto. O trecho sobre ‘não se buscava a soberania, mas a suserania como tantos reis e imperadores medievais’ me fez relembra o conceito de lenta e a longa duração dos processos históricos de Jacques Le Goff em suas entrevistas para a revista L’Histoire e a obra “A civilização feudal: do ano mil à colonização da América” de Jérôme Baschet.
Contudo, ainda que exista este anseio no coração dos monarcas e jesuítas como uma longa permanecia da ethos das cruzadas, em minha pesquisa sobre a presença lusitana no comercio de cabotagem entre Nagasaki e Macau no início do século XVII, encontrei comerciante e até mesmo alguns padres jesuítas que já relatavam seus anseios burgueses similares aqueles visto nos Holandeses, ainda que protestantes e hereges. Visto que seu texto se propõe ao século XVI, gostaria de saber se em suas leituras você se defrontou com indícios de mudança ainda no século XVI em algum autor visto com “excêntrico” pelos seus contemporâneos ou poderíamos considerar “esta busca de capital como matriz de expansão” como um fenômeno efetivamente dos séculos posteriores?
Respeitosamente,
Joanes da Silva Rocha
Caro Joanes Rocha,
ResponderExcluirÉ particularmente visível a partir do reinado de D. Manuel em Portugal (Cf. História de Portugal, de José Mattoso) uma progressiva e (eu diria) radical concepção de que o Reino constitui uma grande família, em que a "casa" do rei era o Reino. Ou seja, em vez de se considerar o Reino como um conjunto ordenado de famílias independentes, passava-se à ideia de uma família alargada, em que havia apenas uma "cabeça" ou instância superior de mando.
Isto provocou várias reações contrárias com a nobreza proclamando seus direitos (Cf. «El Rei Aonde Pode & Não Aonde Quer", de Ângela Barreto Xavier).
Uma das atribuições do rei, como "pai", era justamente o sustento material da família. O que, para Portugal, significava os tratos de comércio, cujo modo de operação se dava em dupla direção: estabelecer relações de "amizade" (as trocas comerciais são expressão de alianças de tipo fraternal e expressão da caridade cristã) e angariar recursos para o Reino. Essa dinâmica para acúmulo de "capital" era chamada, por exemplo, de "masserizia", por Leon Battista Alberti nos seus I libri della famiglia. Os escritores de matéria econômica dos séculos posteriores irão seguir nessa mesma linha de raciocínio.
Nos textos que examinei, pelo que pude perceber, embora se fale muito em acumular recursos das formas mais variadas, não há qualquer indício de pensamento burguês, no sentido de uma autonomia da riqueza para engrandecimento próprio e individualista. Se há vontade de ganho, isso se faz para o aumento da honra e do renome, com o objetivo de melhor participar dessa grande família.
É que no século XVI, a "economia" referia-se a um conjunto complexo de valores e ações que vão do controle de si até o governo da república. A aquisição e a administração dos bens materiais é tão somente uma pequena parte deste complexo (ver os trabalhos de Otto Brunner e Daniela Frigo).
Um autor como o jesuíta António Vieira no século XVII já propunha a adoção de um modelo de exploração comercial baseado no modelo holandês, porém, sempre tendo em vista essa "família alargada". Lembrando que ele foi condenado pela Inquisição não por suas ideias econômicas, mas por sua obra profética (sua interpretação das trovas do Bandarra e do advento do Quinto Império).
Ricardo Shibata
Muitíssimo obrigado pelo esclarecimento, levarei em conta este ponto sobre a utilização das palavras "acumulo" e "capital" em um sentido próprio ao tempo e contexto apresentado por meio dos olhos dos autores indicados. Irei estudar este modo "família alargada" do jesuíta António Vieira para ver se encontro similaridades com minhas fontes.
ExcluirAtt.
Joanes Rocha