Matheus Dal Bem


MOHENJO DARO, VARUNA E O GANGES: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE A ÁGUA, OS RIOS E OS OCEANOS NA IMAGÉTICA HINDU
Matheus Dal Bem

Introdução
O seguinte texto se caracteriza por um breve estudo acerca dos motivos aquáticos que constituem o imaginário e a imagética hindu. A presença constante da água em templos, murais ou mesmo em cultos particulares indica que a substância carrega certa carga simbólica dentro dos parâmetros hindus em relação ao agenciamento e a compreensão do entorno. Preocupando-se em não reduzir a problemática ou compreender a cultura hindu apenas sobre a égide de outras culturas, buscamos por traços da imagética hindu que permitam associações com os significados atribuidos à água em outras culturas, levando em consideração a presença de um arcabouço de símbolos e imagens – que tentamos compreender em um sentido aberto, longe dos racionalismos modernos – comum a cada um dos indivíduos.
A presença da água nos templos hindus
Ao longo da história dos povos do Vale do Indo, é possível encontrar diversas evidências que sugerem que o papel dos rios e dos oceanos dentro do contexto social e cosmogônico hindu advém de outras culturas mais arcaicas e anteriores à constituição do território indiano. Até hoje, a água é um dos elementos de culto mais populares entre os hindus, não sendo incomum a presença de um jarro ou de qualquer outro recipiente que contenha água em cerimônias caseiras ou regionais. A presença da água nos templos é uma maneira de explicitar a relação entre as imagens aquáticas que permeiam a cultura e o imaginário visual hindu, e modos socioculturais anteriores, voltados à apreensão de ambientes e fenômenos relacionados à água.
Em ”Mohenjo Daro” (datada em 3 A.C.), sítio arqueológico localizado no que hoje se compreende como o Iraque, os vestígios deixados sobre o antigo tecido urbano da cidade mostram que a água – ou talvez, de maneira mais própria, os líquidos no geral – detinham importância capital para a cultura que ali floresceu. “Mohenjo Daro” é, afinal, comumente atribuída por historiadores como o “maior e mais bem construído sistema sanitário” quando em comparação com grandes centros urbanos do mesmo período (ROACH), contando com uma rede de irrigação de alta circulação que supostamente atingiria a quase todos os domicílios da cidade, de maneira com que cada casa possuísse instalações voltadas ao uso da água no cotidiano. Mas para além disso, a água influía também sobre a vida religiosa dos moradores de Mohenjo Daro, sendo a estrutura denominada de “Grandes Banhos” – constituída por tanques bem delimitados em que os indivíduos podiam banhar-se em água, leite e outros líquidos – o mais próximo de um grande templo na antiga cidade. Isso sugere que os habitantes de Mohenjo Daro possuíam uma certa afeição pela “limpeza” (ROACH), tanto em sentido físico quanto em sentido espiritual. É especulado que os “Grandes Banhos” de Mohenjo Daro fossem utilizados tanto em tarefas cotidianas quanto em ocasiões sacras, o que sugere que a água se encontra em um ponto de intermediação entre o prosaico e o divino.   
A presença da água em templos indianos cuja datação é mais recente que o sítio de Mohenjo Daro, atesta que o papel intermediador da água continua a ecoar pela cultura hindu. No templo conhecido como Virupaksha, em Hami, há estruturas voltadas ao armazenamento de água que em muito lembram os “Grandes Banhos” de Mohenjo Daro. O templo se localiza, ainda, próximo ao rio Tungabhadra, o que explicita a relação entre os templos hindus e a malha fluvial indiana – é recorrente que os templos sejam construídos nas proximidades de alguns dos sete rios principais que percorrem o vale Indo, tanto objetos de culto quanto de satisfação das necessidades diárias das populações da Índia.
Isso indica que a cultura hindu é muito mais afeita às águas doces que às águas salgadas – mesmo que haja exceções, como o templo relegado ao deus Samucra, em Dwarka. O mar é geralmente aludido na mitologia védica como um território infértil, mais violento e desconhecido que as águas dos rios, geralmente associadas com a fertilidade e a vida (CARRIÉRE, 2002, p. 244). Isso traz em cena uma constante dos elementos cosmogônicos hindus, contida também na água: a potência shivaica, ao mesmo tempo criadora e destrutiva.
Nesse sentido, é sugestivo que o formato dos tanques de Virupaksha e sua ornamentação sigam parâmetros matemáticos e geométricos rígidos, que aludem à “perfeição exata da natureza” (CHAKRABORTY), supostamente remetendo a um sentido de organização criativa, em comunicação com a potência fértil encarnada pelos rios indianos. Que fique claro, contudo, que embora os rios fossem mais amistosos que os mares e os oceanos, a iconografia hindu e a história geográfica e cultural do território indiano indicam que as águas doces também pendem, em ocasiões específicas, à destruição.
A queda do Ganges e a Ganghadara
Como já mencionado anteriormente, a religião hindu está atrelada ao uso da água enquanto intermediadora entre o prosaico e o divino, o que estabelece uma relação íntima entre a cultura e a crença hindu e os sete principais rios da Índia. Cada rio é associado à uma deidade feminina em específico, sendo Ganga uma das figuras centrais, figura mitológica associada ao rio Ganges. Ela é tanto um símbolo de fertilidade, detida de propriedades vitais, quanto a mãe do deus da guerra e da destruição Kaartikeya (DARIAN, 1973, p. 309). Dada a importância de suas águas no cotidiano indiano, Ganga por vezes assume papel central em episódios narrados pelos vedas, sendo o episódio conhecido por “A queda do Ganges” um deles.
A história consiste na descida de Ganges do céu, ato atrelada a ideia de purificação, ao passo em que Ganga e suas águas enxaguaram as impurezas e as corrupções humanas – algo que ressona com os banhos públicos e a importância da limpeza em Mohenjo-Daro. Quando Ganga cai, antes de efetivamente chegar à Terra, ela fica presa nos cabelos de Shiva, que a segura por um momento antes de libera-la pelo solo e perpetuar a vida e a fertilidade. Sua presença na imagética associada à Ganga no geral é recorrente – um de seus avatares é denominado de Ganghadara, ou “aquele que segura o Gange”. Sendo ao mesmo tempo o pai e o destruidor de todas as coisas, ele reafirma o que já foi anteriormente constatado acerca da potência shivaica da água segundo a mitologia hindu.
Um dos exemplos da iconografia associada à queda de Ganga é um dos relevos em Mamallapuram, datado por volta de 7 a.C. Usado tanto como objeto de culto, quanto como objeto de uso prosaico – visto a presença de uma fonte em seu topo – o mural mais uma vez reforça o papel intermediário da água. Retrata a queda do Ganges desde o Himalaia, passando pela testa e os cabelos de Shiva, até chegar ao solo, acontecimento que reúne os seres terrestres em volta de suas margens. Confluindo diferentes corpos – animais, deuses e humanos – em alguns poucos planos, a cena evocada no relevo de Mamallapuram é um vislumbre do caráter cíclico atribuído à água na cultura hindu. Uma miríade de seres comparece à queda de Ganga, pois é da água que os seres advém – as ditas “águas da existência” – e para a água que todos os seres retornam, após o cessar da vida – as “águas da não existência”.
Além disso, o mural ainda traz uma associação intrigante e não tão recorrente na iconografia do Ganges, entre os seres naga – híbridos entre o homem e a serpente – e Ganga. Conforme atestado por Steven Darian em artigo voltado à iconografia do Ganges na arte indiana:
De uma profunda fenda na rocha, surge um rei naga homenageando [Ganga], suas mãos juntas em posição anjali... Abaixo de seu corpo serpentino, prevalecendo sobre as margens fendidas do rio, encontramos a rainha naga, sua mãos em pose similar à do rei... embora não comumente associados, os nagi e Ganga compartilham a mesma origem aquática e algumas vezes aparecem juntos. Perto da confluência entre do Ganges e do Yamuna, em Prayag, há (ou havia, até um século) um templo dedicado a Naga-Vasuki... Ao peregrino, o mérito de se banhar na confluência do Ganges e do Yamuna não é completo até que se visite o templo do rei das serpentes. (DARIAN, 1973, p. 312)
Essa associação é outro ponto de ligação entre a imagética aquática e o templo de Mohenjo-Daro, pois especula-se que a figura de Ganga seja derivada de outra deidade feminina cultuada pelo Vale do Indo, também ligada à figura reptiliana e serpentina, como é comum no arquétipo relacionado à deusa mãe. A figura ofídica é constantemente associada ao feminino, à morte, à fertilidade, ao renascimento e à água em diversas outras culturas, incluindo cultos separado temporal e espacialmente, realizados pelos nativos da América do Norte, pelos habitantes da Ilha de Creta e mesmo pelos cristões em êxtase pela Virgem Maria com uma cobra aos seus pés.  
Varuna, o makara e a flor de lótus
Segundo a mitologia védica, tanto os homens quanto os répteis advem das mesmas águas. As serpentes e cobras seriam seres intermediários entre o divino e o prosaico, por terem uma suposta vida dupla, entre o solo e as águas. Em paralelo a figura das serpentes, um dos motivos comumente associadas a Ganga é o makara, o seu vahani (veículo), um ser híbrido, também de vida dupla, que se assemelha aos crocodilos e jacarés. Ganga e os makaras são comumente associados também à flor de lótus, planta que cresce na lama dos pântanos, também símbolo de confluência entre o divino e o prosaico e de origem comum ao homem e aos répteis.
Nesse sentido, trazemos em jogo a figura de Varuna, o senhor dos mares e das chuvas, deidade compreendida como um dos avatares de Brahma, o deus criador, Agni, o deus do fogo, e Mitra, deidade indo-iraniana mais tarde legada a cultura greco-romana. Sua iconografia entra em confluência com os significados atribuídos à água pela cultura hindu: Varuna é tanto “aquele que ata” quanto “aquele que cerca”. Ata, pois a água é fonte e fim de todos os seres, e cerca pois a água rodeia toda a terra conhecida pelo homem. Tanto a flor de lótus como o nós de Varuna trazem em si a forma circular, que, na cultura védica, esta é compreendida como o início e o fim do ciclo, em eterno recomeço entre aquilo que há e aquilo que não há. Varuna, como o senhor das chuvas, traz a criação e a fertilidade, ao mesmo tempo que, como senhor dos oceanos, encompassa o mistério e a imprevisibilidade.
Além disso, um dos mitos associados a Mitra, o já mencionado avatar de Varuna, corresponde de novo a presença do líquido como força tanto de morte quanto de vida, visto que ao roubar e degolar um touro sagrado, Mitra restitui a fertilidade a uma terra árida através do sangue que jorra do animal.
Conclusão
O que efetivamente se conclui através do estudo da imagética hindu voltada aos motivos aquáticos, é que a água, embora seja encarada de maneira diferente dado o contexto, é tangenciada por alguns dos principais ideais que caracterizam a cultura hindu – a circularidade e o caráter cíclico da vida, a potência shivaica de destruição e criação e o renascimento e o enxague das impurezas – estando assim, em relativa sintonia aos significados simbólicos atribuídos a outras formas e motivos dentro da imagética hindu, ou mesmo na imagética de outras culturas. Nesse sentido, a água constitui um dos principais motivos da imagética hindu, tomando papel capital em sua cosmogonia, conforme evidenciado pelo relevo da “Queda do Ganges” em Mamallapuram, e pela presença constante da água em templos hindus.
Referências
Matheus Dal Bem Busetto é Graduando em História da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email: matheus_dal_bem@hotmail.com
CARRIÉRE, Jean Claude. Índia: um olhar generoso.  Ediouro, 2002  p. 244 – 245, p. 390 - 391
DARIAN, Steven. The Ganges In Indian Art. 1973. Disponível em: https://goo.gl/1t6eiK. Acesso em 23/06/2019
CHAKRABORTY, Moumita. Virpaksha, Temple Of Hampi: a mathematical and architectural wonder. Disponível em https://bit.ly/2JJTqKK. Acesso em 23/06/2019
ROAH, John. Mohenjo Daro 101. Disponível em https://on.natgeo.com/2EFK9iL. Acesso em 23/06/2019
ZIMMER, Heinrich R. Myths and symbols in indian art and civilization. 1964. Disponível em: https://goo.gl/apoHpD Acesso em 23/06/2019
KRAMRISCH, Stella. The Indian Templo Vol I. Motilal Barnasidass, 1976. 
JANSEN, M. Water supply and sewage disposal at Mohenjo-Daro. 1989. Disponível em: https://goo.gl/vFaH9. Acesso em 23/06/2019

2 comentários:

  1. LIA RODRIGUEZ DE LA VEGA6 de agosto de 2019 às 01:18

    Seguindo a importância dos líquidos em geral na Índia e na água em particular, acho interessante lembrar a história do oceano de leite e a fabricação de amrita, o néctar da imortalidade e a batalha por ele entre deuses e demônios, porque, como parece acontecer com qualquer outra história relacionada a líquidos, isso parece se referir a um espaço-tempo específico. Parece haver uma rede de idéias que conecta as histórias relacionadas a líquidos, com os diferentes passados e o presente, ao mesmo tempo em que confere santidade à espacialidade de toda a Índia.

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    1. Matheus Dal Bem Busetto8 de agosto de 2019 às 21:11

      Obrigado pela comentário Lia, o episódio do "batimento do mar de leite" é mais do que cabível na discussão. Ele contém toda a malha de símbolos mencionadas acima (a figura feminina, a flor de lótus, a figura reptiliana, etc) e ao que me parece, condensa bem a potência shivaica do líquido dentro do contexto hindu.
      No que se refere ao espaço-tempo das histórias, tomei a água enquanto corpo simbólico essencialmente anacrônico, o que acredito que seja a melhor maneira de tatear a "rede de ideias" que entrelaça os tempos específicos de cada mito.

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