ENTRE
DIÁLOGOS, DISPUTAS E EXERCÍCIOS MNEMÔNICOS: OS JESUÍTAS E AS ABORDAGENS DE
ENSINO NO COLÉGIO DE SÃO PAULO EM GOA (1542-1606)
Camila Domingos dos Anjos
Conquistada em 1510, Goa
consolidou-se como capital do “Estado da Índia” durante a primeira metade do
século XVI (THOMAZ, 1994). Gradativamente a capitalidade de Goa constituiu-se
através da transladação de instituições político-administrativas centrais que
existiam em Portugal (XAVIER, 2003, p.4). Além do aparato militar e
administrativo, a historiografia tem ressaltado o papel do catolicismo como uma
das bases de sustentação do Império Português ao Leste.
A articulação entre os poderes políticos
e eclesiásticos na expansão portuguesa foi enunciado há décadas atrás por
Charles Boxer, autor que postulou a ―aliança estreita e indissolúvel entre a
“fé” e o “império” (BOXER, 1989, p.98). Por meio de
um proselitismo católico, os portugueses tentaram instituir uma “hegemonia
cristã” em Goa, tentativa esta que foi viabilizada pela construção de uma ampla
rede paroquial e pela ação de ordens religiosas.
Os jesuítas chegaram ao Estado da Índia em
1542. Dos primeiros anos das
missões evangelizadoras até o século XVII, os inacianos estabeleceram uma série
de espaços dedicados à conversão e instrução dos gentios no ensino das
primeiras letras e na doutrina cristã. Ângela
Xavier acentuou que para difundir a doutrina cristã foi necessário recorrer a
diversos instrumentos que combinavam instâncias militares e políticas com
dispositivos de “violência doce” que permitissem o doutrinamento e assistência
às populações locais (XAVIER, 2003, p.360). Dentre esses dispositivos,
destacamos a ação dos jesuítas nas Confrarias, Casas ou Escolas de ler e
escrever e nos Colégios. Em Goa, ressaltamos a atuação dos
mesmos no Seminário de Santa Fé e no Colégio de São Paulo ― espaços destinados a doutrinação de meninos para a
formação de um clero nativo.
Nós buscaremos nesta comunicação
discutir as abordagens de ensino incorporados pelos jesuítas em uma das
principais instituições fundada pelos inacianos no Oriente: o Colégio de São
Paulo, em Goa. Com base nas cartas dos missionários reunidas na “Documenta
Indica”, investigaremos os principais recursos utilizados pelos jesuítas para
auxiliar no doutrinamento dos meninos nativos.
Segundo
Felipe Borges, o Seminário de Santa Fé e o Colégio de São Paulo eram em sua
essência instituições de educação, considerando o conceito de educação como
algo amplo, isto é, toda forma de ensino e formação. Nesse sentido, a catequese
e o aportuguesamento dos nativos eram atividades educativas. (BORGES, 2018,
p.114).
No
intuito de garantir o êxito dessas atividades, a Companhia de Jesus imbuiu-se
de meios e estratégias necessárias para a formação dos jovens alunos que
frequentavam seus colégios, seminários e classes. As instruções fornecidas
possuíam uma estreita relação com os fins religiosos e buscavam formar uma
consciência cristã, bem como instituir uma obediência às autoridades religiosas
e civis (CAMBI,1999, p.263).
O
sucesso da implementação da doutrina cristã nos meninos nativos dependia
da comunicação estabelecida com as populações locais. Nesse sentido, os
jesuítas precisaram, a princípio, enfrentar as barreiras impostas pela língua.
Para tanto, o uso de intérpretes foi fundamental. Ademais, alguns jesuítas
demonstraram interesse e apresentaram esforços para aprender a língua nativa.
Não se tratava, como pontuou Manso, de um apreço pelas culturas locais, mas
antes a sua destruição que os moveu neste propósito (MANSO, 2005).
O
domínio da língua vernácula da região serviu, como enfatizou Tavares, para dois
modos de ação. O primeiro consistia em formar missionários capazes de se
comunicar diretamente com os cristãos da terra, principalmente para atender o
sacramento da confissão com independência dos intérpretes. O segundo consistia
em divulgar a doutrina através de catecismos e outros manuais, esses que foram
fundamentais para o ensino da doutrina cristã aos nativos (TAVARES, 2004,
p.136).
Os
jesuítas recorreram às cartilhas, ao catecismo dialogado e bilíngue (português
e língua nativa) para doutrinar os meninos nativos. Em Goa e também nas demais regiões
do Estado da Índia, destaca-se a partir de 1566 o uso da cartilha “Doutrina cristã: escrita
em diálogo para ensinar os meninos” elaborada pelo Padre
Marcos Jorge e traduzida pelos para diferentes idiomas locais na Índia para o
ensino dos preceitos cristãos aos nativos. O método utilizado baseava-se no
ensino mnemônico pautado na repetição, tendo em vista a memorização rápida. No
capítulo XIII da IV parte das “Constituições”, Loyola já havia ponderado que os
mestres deveriam incentivar os alunos as repetições, composições literárias,
declamações e discussões públicas, ao passo que deveria ser exigido também a
declamação das mesmas, bem como discussões públicas (LOYOLA, 2004, p.142).
As prescrições supracitadas nas “Constituições” não constituíam um modelo inédito. Kassab pontuou
que os jesuítas e consequentemente os colégios fundados pelos mesmos foram
influenciados pela pedagogia que vigorava na Universidade de Paris, uma
educação e aprendizagem hierárquica que ocorria através de repetições, disputas
(“aemulatio”), atividades realizados a partir da música e do
teatro. O “modus parisienses”, caracterizava-se também pela grande
frequência de exercícios, disputas, repetições, composições, atos públicos e
declamações, que faziam do “modus parisienses”
uma pedagogia ativa (KASSAB, 2010, p.98).
Podemos
perceber os reflexos desses princípios nas práticas adotadas pelos missionários
que atuaram no Estado da Índia. Há nas cartas uma preocupação em repetir
orações, ações e atividades para a memorização do conteúdo ensinado. No geral,
as aulas consistiam em "decorar", recitar
o catecismo, tanto em português como na lígua nativa e responder as perguntas
dos mestres. Ao que nossas fontes indicam, essas atividades eram dignas de
reconhecimento e consideradas um sucesso quando os meninos apresentavam saber o
conteúdo “de cor”. Por exemplo, em 1555,
frei Aires Brandão escreveu, de forma enaltecedora, que nenhuma terra se
fazia tanto fruto como a Índia, pois dificilmente se encontravam meninos de até
quinze anos que não sabiam a doutrina de cor. Relatos semelhantes são
encontrados em outras regiões como, por exemplo, em Baçaim, onde Pero Vaz
afirmou que no colégio dos meninos era ensinado um catecismo na língua da terra
que compreendia os artigos da fé e “se procura o quanto possível que saibam de
memoria” (WICKI,
vol. VII, p.539).
Toda
doutrina cristã aprendida, conteúdo decorado e habilidades desenvolvidas no
colégio eram por vezes celebrados em eventos cristãos. Alguns exercícios foram
recorrentes, como a apresentação de discursos latinos e de tragicomédias,
diálogos, autos e disputas. As encenações poderiam ocorrer tanto nas
freguesias, como no colégio, seminário e classes de ler e escrever, como
veremos a seguir.
Os meninos realizavam exercícios literários
públicos (previstos na quarta parte das “Constituições”
da Companhia), cujos propósitos eram praticar os fundamentos teóricos estudados
e inspirar a piedade e devoção nas demais populações. Nas classes de ler e
escrever, o padre Sebastião Gonçalves pontuou que eram feitas disputas,
inclusive com os de “pouca idade”. Aos que se destacavam, eram entregues
verônicas, rosários, cruzes e imagens como recompensas e prêmios (WICKI,
Joseph. Vol. VIII, pp.35-93). Essas disputas poderiam ser realizadas tanto em
português, como em latim. A possibilidade dependia da habilidade e desempenho
dos meninos.
No
que toca às disputas e demais exercícios realizados nas freguesias, o padre
Sebastião Fernandes citou, por exemplo, que em Goa, na Igreja de Conversão de
S. Antônio, dois irmãos reuniam aproximadamente 200 meninos, quase todos
canarins (expressão utilizada para designar o povo de Goa; por vezes é aplicada a gentios,
mas também a cristãos nativos), descritos como
contínuos e diligentes no aprendizado. Os irmãos levavam alguns prêmios, como
verônicas e cruzes para incentivar os “pueris”
a não faltarem.
Os prêmios eram utilizados para despertar
interesse no aprendizado da doutrina, ao passo que também serviam de estímulo
para que esses meninos deixassem seus afazeres ou responsabilidades em prol da
doutrina. Além de premiados, alguns dos
meninos das freguesias foram levados ao seminário, onde lhes ofereceram
merendas. Presenteados e alimentados, supostamente satisfeitos eles se
propuseram a estudar mais. Segundo Fernandes, era de louvar muito ao Senhor ver
esses frutos colhidos, que “o demônio avia tão pouco possuía” (WICK, vol. VIII,
p.56)
Os
exercícios públicos desempenhados nas freguesias tinham o objetivo primordial
de atrair a atenção dos gentios. As
disputas eram, conforme o padre Gomes Vaz, um recurso para este fim. Relatou
como exemplo uma ocasião em Goa em que foi armado um pequeno altar na rua com
imagens devotas e velas acesas. Ao redor os assentos foram organizados em
círculo, e os meninos puseram-se a disputar. Havia nessas disputas um menino
que regia o exercício e quando algum errava, outro em seguida dava
continuidade. Na escrita jesuítica, destaca-se que a devoção que todos possuíam
pela doutrina era motivo de atração dos moradores. Muitos homens, mulheres e
familiares iam para as janelas assisti-los e gostavam tanto deste exercício,
que por vezes eles mesmos montavam um altar para os meninos e iam ao colégio
para pedir aos mestres que deixassem os meninos saírem para recitar a doutrina.
Com esse exercício, algumas pessoas da terra que sabiam o português aprendiam
razoavelmente a doutrina (WICKI, vol. VII, pp.38-71).
As
disputas poderiam causar grande entusiasmo na população local, tanto em gentios
como em cristãos, ao passo que funcionavam também como um veículo propagador da
língua portuguesa. Dessa forma, as disputas, não só promoviam a memorização dos
preceitos cristãos por parte dos meninos, como funcionavam também como um
recurso utilizado para os difundir a língua portuguesa entre a população nativa
adulta. Nos dias festivos, como acentuaremos a seguir, essas apresentações
possuíam também outros objetivos: a afirmação da importância dos estudos e das
letras como um meio edificador e transformador e a reafirmação do trabalho
jesuíta perante as autoridades portuguesas.
Os
eventos cristãos representavam uma oportunidade para exibir os frutos do
trabalho missionário, que a muito a suas sementes foram plantadas. Assim, nos
dias festivos, era recorrente que os meninos apresentassem diálogos, disputas,
tragicomédias e autos. Ademais, todo o trabalho de formação realizado com os
meninos precisava ser divulgado, tanto as autoridades portuguesas, o que
poderia atrair mais doações, quanto aos gentios, como um meio lúdico e atrativo
para a conversão.
Havia
dentre esses atos organizados, exercícios e representações exclusivas para a
recepção de autoridades, como a do vice-rei e a do arcebispo, por exemplo.
Nesses eventos os meninos dançavam ou cantavam, além da apresentação de algum
exercício, diálogo ou auto. A presença do vice-rei exigia uma ornamentação
suntuosa, indumentária vistosa e aparatos cênicos que conferiam pompa à
ocasião, que por ventura atraía a atenção das populações nativas e também
portuguesas.
Em
Cochim, o padre Jerônimo Rodrigues (1570) relatou que no dia 21 de outubro (dia
das Onze Mil Virgens) foi encenada uma tragicomédia da história de Tobias, esta
que teria sido um pouco adiada para a espera do vice-rei. Representaram então
um “diálogo de reinóis”, em que os estudantes da Índia argumentavam qual seria
a melhor terra e criação de filhos, se era a de Portugal ou a da Índia. Após
ambas as partes muito argumentarem, concluíram que “ainda que os climas tinhão
muita força, ‘sapiens dominabitur
astris’ (sem dúvida alguma), e que a criação e ensino faz os homens” (WICKI, vol. VIII, p.219).
A
carta de Rodrigues nos permite fazer duas ponderações: a primeira refere-se ao
fato de que a criação e educação poderiam retificar os gentios, ainda que a sua
“natureza” e proveniência fossem duvidosas. A segunda ponderação diz respeito
às tragicomédias e o seu efeito transformador na população nativa. Segundo o
missionário, todos ficaram muito satisfeitos e os pais da Índia ficaram movidos
a criar melhor os seus filhos, “com menos mimo e mais castigo” (Ibidem, p.129).
É
importante ressaltar que os exercícios literários e teatrais desenvolvidos em
público convidavam a plateia para além do entretenimento passivo, como
ressaltou Reis. Gentios e portugueses eram levados também a reflexões, a
discernir e julgar o bom e o ruim nas teses defendidas (REIS, 2011 p.191). Celebrava-se as festas, mas também se reafirmava nessas ocasiões os
preceitos cristãos, a importância dos estudos e consequentemente a importância
dos missionários nas atividades educativas.
Para
além do entretenimento, o teatro constituía uma estratégia pedagógica empregada
para formar a moral e incutir as virtudes e a literatura entre os jovens e a
população nativa. O teatro possibilitava também aos estudantes o
desenvolvimento de suas faculdades e aprimoramento de aptidão de cada um, de
modo que representava também a continuidade das atividades desenvolvidas no
colégio. Nas freguesias, aos que não compreendiam o português, as encenações,
além de serem mais atrativas do que as pregações, possuíam um apelo emotivo, comovedor.
O teatro possibilitava que a lição quando não compreendida por completo, em
função do idioma, poderia ser sentida e nesta estratégia os meninos estudantes
do colégio de São Paulo tinham importante papel: cabia a eles com sua
obediência, inocência e demais virtudes sensibilizar a população e inspirá-la a
se converter.
A
divulgação da fé cristã e a disseminação dos valores ocidentais precisavam ser
transmitidos não apenas aos meninos do colégio, de modo que a teatralidade de
algumas atividades foi utilizada como recurso para que os preceitos cristãos
fossem introduzidos e assimilados de uma forma fácil e atrativa para a
população nativa adulta. O uso dos meninos nessas atividades tinha o duplo
objetivo de trabalhar os conteúdos aprendidos, reforçando a memorização dos
mesmos e atrair a atenção dos gentios para a devoção e dedicação dos meninos,
ações que deveriam inspirar os adultos, comovê-los, instiga-los à conversão.
Assim como Ferreira Júnior e Bittar, não consideramos o teatro e
as demais apresentações públicas apenas um instrumento lúdico para estimular a
aprendizagem, e sim também um recurso utilizado pelos jesuítas para inculcar
nos nativos, seja eles os que contracenam ou o público, concepções morais,
religiosas e culturais. Isto é, uma
forma de educação e aculturação (BITTAR; FERREIRA JUNIOR, 2004, p.174). Tratava-se de um meio entretido e disfarçado de induzir
comportamentos e crenças, uma violência dócil, camuflada em um ambiente de
celebração, de músicas e dança, ornamentado conforme ocasião.
Toda
a pompa conferida aos eventos públicos buscava também atrair a atenção dos
gentios, que curiosos ou entretidos, poderiam se aproximar da fé católica.
Dentro deste propósito, destacamos também o papel da música, muito utilizada no
intuito de “afeiçoar” os gentios à “verdadeira fé”. Na educação dos meninos, a
música também constituiu uma estratégia dos inacianos para reforçar o ensino
mnemônico por meio da repetição de rezas e cantos. Por exemplo, em Goa,
conforme o jesuíta Gomes Vaz, a procissão das Endoenças resultava sempre em
muita comoção e lágrimas, “que não sei se pode aver cousa de mais edificação”.
A representação feita “era para quebrar ainda os muito duros coraçõis” (WICKI, vol. X, p.721). Segundo o padre, o modo como era feita a procissão (com música e
devoção) bastava para sensibilizar os corações. Gomez Vaz nos propicia um
exemplo evidente de como a música foi um recurso de apelo emotivo, utilizado
pelos inacianos para acessar os corações dos fiéis e gentios, em busca de
comovê-los. A comoção, como podemos ver, atravessava todas as atividades
desempenhadas pelos meninos do colégio, era o objetivo primordial junto também
com a instrução dos nativos e reafirmação do trabalho missionário desempenhado.
A música era utilizada pelos jesuítas pela
facilidade que transmitia as mensagens cristãs, ao passo que se mostrava um
atrativo tanto para os meninos, quanto para a população nativa. A música
além de contribuir na fixação dos conteúdos da doutrina católica, afastava os “pueris” dos “maus costumes” e das
cantigas consideradas “gentílicas”, substituindo-as por cantos cristãos. Como
pontuou o padre Melchior Nunes: "aqueles que antes com os seus pais
adoravam os ídolos, agora com grande alvoroço cantam as coisas da santíssima
fé" (WICKI.
Vol. V, pp.398-423).
Os
missionários e a legislação portuguesa muito dissertaram sobre os pagodes
(templos hindus), as bailadeiras (dançarinas), os tangedores, as festas
matrimoniais e demais cerimônias e festas locais de um modo geral. Os ritos
estavam sendo constantemente denunciados nas legislações e constituindo tópica
nas cartas. É possível que os jesuítas, ao perceberem a recorrência das
celebrações e da música no cotidiano hindu, tenham recorrido também a esses
meios e construído a partir dos mesmos uma instrução prazerosa, alegre e ativa
para atrair a atenção dos nativos. Proibia-se os ritos considerados gentílicos
e incentivava-se a participação da comunidade nas cerimônias cristãs.
O canto, a
dramatização, o coral e a dança constituíram recorrentes instrumentos
utilizados pelos inacianos no Colégio de São Paulo para transmitir as Sagradas
Escrituras e as virtudes da humildade e obediência.
Nas procissões iam gentios, jesuítas e meninos tangendo e ouvindo os
instrumentos, cantando, dançando, celebrando dias santos, a religião católica,
louvando Jesus e apreciando sua Cruz. Essas ocasiões incrementavam, nas
memórias dos participantes, cantigas e preceitos cristãos, promovendo a
simbiose entre a cultura das populações nativas e a cultura europeia. Como pontuou
Kassab, o canto, assim como o teatro e a dança constituíam “ações que
socializavam, educavam e deleitavam ambos os povos (KASSAB, 2010,
p.135).
Por
fim, ressaltamos que no Colégio de São Paulo, a instituição dos preceitos
católicos nos meninos sucedeu por diversos meios, esses inclusive inspirados em
abordagens europeias de ensino, como o “modus parisienses”. Nossas fontes nos
indicam que os inacianos recorreram a disputas, ao teatro, música, o catecismo
dialogado por meio de cartilhas e à memorização pela repetição como ferramentas
para estimular uma aprendizagem harmoniosa, aguçar a memória dos estudantes e
sobretudo moldá-los conforme os princípios cristãos e costumes portugueses.
Tais atividades constituíam um meio pelo qual os missionários buscavam disseminar
temas, saberes e normas, não apenas aos meninos, mas também às comunidades.
Consideradas lúdicas, próximas de um entretenimento, os exercícios, disputas,
teatralizações públicas representavam uma violência dócil, que buscava
substituir as crenças e a cultura hindu por referências cristãs, familiarizando
os gentios com os costumes portugueses e a fé católica. Nesse sentido, as
abordagens de ensino jesuíticas adotadas dentro dos colégios visavam não apenas
tornar mais didática a instrução dos meninos, como também utilizá-los para
propagar o catolicismo nas freguesias e em eventos públicos. A ocasião permitia
a prática e a exposição do conteúdo, bem como atraía a atenção dos gentios e
reafirmava a importância do trabalho missionário.
Referências
Camila Domingos dos Anjos, doutoranda pelo Programa de
Pós-Graduação em História pela UFRRJ, Bolsista FAPERJ NOTA 10.
Fontes:
LOYOLA,
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Bibliografia:
BITTAR,
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Educação e Sociedade, Campinas
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Luiz Filipe. De Ceuta a Timor.
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Ângela Barreto. A invenção de Goa:
Poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII. Florença,
Tese (doutorado em História). Instituto Universitário Europeu, 2003.
Camila, seu texto me fez pensar sobre o termo "violência dócil"...Não vejo que seja tão dócil assim, pois a atuação da Companhia de Jesus para catequizar passava pelo disciplinamento dos corpos, algo que creio não foi diferente em Goa - os meninos que faziam exercícios públicos eram antes "treinados" "disciplinados", e neste processo o disciplinamento não era violento, com castigos e punições? As recompensas citadas não seria a versão opostas dos castigos e punições?
ResponderExcluirClarice Bianchezzi
Boa tarde Clarice
ExcluirObrigada pela questão.
O termo “violência doce” utilizado pela autora Xavier é atribuído quando comparado a outras instâncias, como por exemplo, o tribunal inquisitorial. As ordens religiosas, a inquisição, os bispos e demais agentes coloniais buscaram impor uma disciplina cristã aos povos nativos e essa disciplina não sucedeu de forma igual. Digamos que havia abordagens diferentes.
De um modo geral, quando comparada aos métodos inquisitoriais, por exemplo, a disciplina e o catecismo pregado pelos jesuítas era algo mais dócil. A rotina de imposição de costumes portugueses e cristãos representava uma violência mais “abstrata”, no sentido que buscava distanciar o nativo de sua cultura, língua, vestimenta e hábitos locais. Esse processo de “aculturação” desempenhado em rotinas de ensino não deixa de ser uma violência, no sentido que visava suplantar o que existia antes, mas não necessariamente sucedia de forma bruta.
As regulamentações que visavam organizar o Colégio de São Paulo em Goa recomendam demasiadamente que a educação seja “pelo amor”, não pela violência. Aliás, com o tempo, essa questão se torna uma tópica da cartas: “A força deveria ser usada para converter os nativos?” Quando esse debate é trazido para o colégio de São Paulo, reafirma-se que os meninos não deveriam ser punidos ou castigados com violência física. Se muito necessário, que outra pessoa fizesse isso, nunca um padre. Nesse sentido, as cartas se esforçam para que o leitor acredite que as relações que interligavam as crianças nativas e os padres eram relações de amor e carinho. Não significa que não ouve violência, mas é muito raro encontrar um caso de violência explícita desempenhada pelos jesuítas. Encontrei um relato de Cochim que o próprio padre afirmou ter agredido o menino para ele se converter. Em outras regiões, encontro também relatos de padre envolvidos em invasões de casas para pegarem a força crianças nativas órfãs (sem pai, mas não necessariamente sem mãe ou família).
No que toca as recompensas, acredito que era apenas uma forma de atrair a atenção dos meninos, tornar o catecismo mais interessante. Para tanto, eles costumavam dar alguns itens e até mesmo comida.
Camila Domingos dos Anjos
Ótimo texto, ótima pesquisa. Gostaria de saber se em que medida é possível traçar paralelos entre a experiência de ensino nas escolas jesuíticas de Goa e educação praticada na América Portuguesa? Obrigada.
ResponderExcluirJeane Carla Oliveira de Melo.
Olá Jeane
ExcluirObrigada pela pergunta.
É possível sim, afinal a Companhia de Jesus é regida por normas. A quarta parte da Constituição da Companhia de Jesus e posteriormente o Ratio Studiorum vai buscar
regular e padronizar a administração, os currículos e as práticas de ensino em instituições educacionais jesuítas. Trata-se de um documento normativo que prescrevia regras para todos os envolvidos no processo educativo dentro dos Colégios, desde o provincial e reitor até os alunos. No que toca as Constituições, embora tivessem as suas recomendações gerais, não se ignoravam as peculiaridades locais: “Insistirão com maior diligência naqueles que mais se relacionam com o fim indicado, tendo em conta as circunstâncias dos tempos, lugares, pessoas etc., como parecer oportuno [...]”. Dessa forma, podemos considerar que alguns conteúdos e abordagens de ensino poderiam ser comum a todos, entretanto essas práticas poderiam adquirir outros contornos conforme a especificidade da região e necessidade dos padres e colégios. Eu não li as cartas relacionadas ao Brasil, mas li algumas bibliografias em que claramente podemos traçar paralelos. O artigo “Artes liberais e ofícios mecânicos nos colégios jesuíticos do Brasil colonial traz umas reflexões interessantes sobre os colégios jesuíticos no Brasil”. Para o oriente, há o artigo Convergências e Divergências: O Ensino nos Colégios Jesuítas de Goa e Cochim durante os séculos XVI-XVIII da Maria de Deus Manso. Obviamente esses artigos não dão conta de toda a temática, mas por meio deles, você pode entender melhor e fazer algumas comparações.
Att
Camila Domingos dos Anjos