EMBAIXADA A TAMERLÃO (1406) E AS CARACTERÍSTICAS DOS DESLOCAMENTOS
NA BAIXA IDADE MÉDIA
Sofia Alves Cândido
da Silva
Introdução
A Idade Média caracteriza-se por ser um período em que grande quantidade
de viagens foram realizadas e, a partir delas, houve a redação de diversas
obras caracterizadas como literatura de viagens. As razões para estes
deslocamentos são inúmeros, dentre eles estão, por exemplo, os motivos
religiosos, diplomáticos, busca de aventuras, ou que iriam guerrear, bem como,
realizar trocas comerciais. Sendo assim, os homens que viajavam na Idade Média
podem ser descritos como peregrinos, guerreiros, cavaleiros, clérigos, nobres,
mercadores e até mesmo reis.
A literatura de viagens apresenta-se como um gênero literário
fronteiriço, no qual, há diversas características próprias, mas muitas outras
que o aproxima de outros gêneros, como as biografias e as crônicas. Dessa
forma, de acordo com Miguel Ángel Pérez Priego (1984), são características dos
livros de viagens a presença de um itinerário, que é o componente estrutural
fundamental articulador da narrativa. Uma ordem cronológica, que legitima a
verossimilhança da viagem e uma ordem espacial, que se associa ao itinerário,
pois há uma descrição do espaço e há também a presença das maravilhas, definida
como “mirabilia”, por Jacques Le Goff (2017). Com isso, podemos considerar
“Embaixada a Tamerlão” (1406), pertencente ao gênero literário em questão.
Soma-se aos elementos supracitados, as propriedades apresentadas por
José Antonio Ochoa Anadón (1990), como por exemplo, a divisão entre a
literatura real e imaginada. A primeira consiste em uma viagem que foi
realizada por uma pessoa ou um grupo delas, onde algum destes personagens
escreve o relato de sua viagem, durante ou após realizá-la. Um dos relatos mais
conhecidos é Livro das Maravilhas, de Marco Polo.
Já a segunda modalidade, constitui-se a partir de um autor que possui um
repertório, o que permite a realização de um relato de viagem. Entretanto, o
trajeto descrito não foi realizado fisicamente pelo autor, ou seja, após a
leitura de uma ampla bibliografia sobre viagens o escritor consegue compor uma
viagem imaginária e redigi-la. Esse é o caso, por exemplo, do livro “Viagens de
Jean de Mandeville”.
Sendo assim, ao apontarmos as características, é possível enquadrar o
relato de viagem “Embaixada a Tamerlão” (1406) na tipologia das fontes de
relatos de viagens reais. Uma vez que, a obra narra a viagem de ida e volta, de
uma embaixada castelhana, que partiu de Cadiz, atualmente na Espanha, e
realizou um trajeto até Samarcanda, situada hoje no Uzbequistão.
A embaixada foi proposta pelo soberano de Castela e Leão, Enrique III
(1390-1406), e era composta por Ruy González de Clavijo, camareiro real e autor
da obra em questão,
frade Alonso Páez de Santa María e Goméz de Salazar, este último mestre
de armas. Além disso, estavam presentes, aproximadamente, mais catorze homens,
responsáveis pelo cuidado e carregamento dos presentes que o rei castelhano
enviava ao imperador oriental, Tamerlão (1386-1405). O envio de presentes era
uma característica da diplomacia medieval, como afirma Miguel Ángel Ochoa
(1989).
Por que deslocar-se?
O homem medieval, de acordo com Elisa Ferreira Priegue (1994),
deslocava-se mais que o homem da atualidade. Entretanto, ao observarmos as vias
em que havia trânsito de pessoas na Europa medieval, encontramos espaços
vazios. Isto ocorria, pois a densidade relativa da população na Idade Média era
baixa, quando comparada a dos dias atuais.
Caracterizado como “homo viator” pela historiografia (GARCÍA DE
CORTÁZAR, 1994), os homens eram os que mais se deslocavam na Idade Média. Com
isso, até mesmo os campesinos movimentavam-se, a procura de mercados, feiras e
locais para que pudessem vender suas produções, em troca de provisões para que
fossem capazes de manter suas famílias.
Havia também as questões expansionistas e migrações para novos
territórios, o que fazia com que as populações da Europa e da Ásia no período
medieval se distanciassem das suas terras natais. Outros motivos para as
movimentações recaem sobre o caráter itinerante da administração medieval,
desde os comandos senhoriais, perpassando pelos reais e recaindo sobre as
questões clericais. Uma vez que, era necessário viajar para que fosse possível
controlar seus respectivos domínios e vassalos/súditos/fiéis.
Outro motivo para a realização de
viagens na Idade Média repousa sobre o fator aprendizagem. Era comum, neste
período, os estudantes e homens letrados se deslocarem para adquirirem
conhecimento em outras cidades. Porém, este é um grupo restrito, uma vez que, a
Idade Média configura-se por um período em que apenas a elite, e posteriormente
os mercadores em ascensão, possuíam status para se dedicarem aos estudos.
Já a motivação do deslocamento
narrado na obra “Embaixada a Tamerlão” (1406) recai sobre as questões
diplomáticas, uma vez que, o livro trata de uma viagem realizada por uma
embaixada, formada pelo soberano de Castela e Leão, Enrique III. Sendo assim, a
viagem foi realizada devido à tentativa do rei castelhano em estabelecer uma
via diplomática com o Imperador Tamerlão.
Caminhos e perigos
Os caminhos que os homens medievais percorriam eram repletos de perigos,
como afirma
Jônatas Batista Neto (1988), perigo era uma palavra comum no vocabulário
dos viajantes. Além disso, o sofrimento se fazia presente, como é possível
observar até mesmo na etimologia da palavra “travel”, a partir do verbete do
“The Oxford English Dictionary”, deriva de “travail”, que significa agonia, dor
e sofrimento.
A característica supracitada recai nas questões das viagens dos
peregrinos, que possuía como caráter essencial a penitência. Dessa forma, a
viagem deveria ser uma empresa que causasse certo desconforto para que a
peregrinação e a penitência fizessem sentido. Estes deslocamentos religiosos
tinham como destino cidades como Jerusalém, Compostela e outras regiões
conhecidas por sua forte ligação com o catolicismo, devido à presença de
relíquias ou marcos para a religião cristã.
Os perigos poderiam ser representados por questões climáticas, como por
exemplo, atravessar determinadas localidades em que o clima era muito extremo,
como a neve presente nas proximidades dos Alpes ou os desertos, narrados por
Marco Polo em sua viagem para o Oriente.
Outros desafios englobam as questões que envolvem a travessia de
territórios considerados inimigos, como é possível perceber na narrativa de Ruy
González de Clavijo, quando a viagem dos embaixadores é interrompida por um
naufrágio no Mar Negro. Esta situação fez com que os viajantes fossem
carregados pela maré para uma área dominada por turcos, hostis aos castelhanos.
Com isso, foi necessário que os homens enviados pelo soberano Enrique III
(1390-1406) mentissem a respeito de suas origens, afirmando para os inimigos
que os naufragados eram genoveses e não castelhanos.
Para além disso, também observa-se nos livros de viagens a problemática
das vias, que eram de difícil trânsito, bem como, os ataques de animais
selvagens. Outra questão vivenciada pelos viajantes eram as doenças, que
poderiam ser contraídas facilmente, devido à precariedade das condições
sanitárias e o contato com regiões que apresentavam enfermidades distintas das
dos locais de origem dos homens que estavam em deslocamento.
Assim como, é possível visualizar nos relatos de viagem as questões
acerca da alimentação, do dinheiro e dos pertences que eram carregados. Sendo
presente também a problemática dos roubos e saques, frequentes nas estradas
medievais.
Os mares, além de apresentarem problemas que envolviam as questões
marítimas, como as marés, ventos desfavoráveis e tempestades que agitavam as
águas, também estavam presentes as problemáticas que englobavam os saques e
roubos, promovidos por piratas. Tal fator aumentava a insegurança das viagens,
bem como, elevava o valor do seguro das cargas.
A questão das cargas se faz presente, pois, era comum na Idade Média que
os viajantes pegassem “carona” com os navios que realizavam comércio. Dessa
forma, a viagem era influenciada pelos locais em que o capitão deveria parar
para comercializar os produtos que estavam em sua posse. Como é possível
visualizar na descrição de Ruy González de Clavijo, quando comenta que “[...]
foram à Málaga e ancoraram no porto, ficando ali desde o dia em que chegaram,
sexta-feira, e continuaram ali, no sábado, domingo, segunda-feira e terça-feira,
enquanto o capitão descarregava os jarros de azeite e outras mercadorias”
(GONZÁLEZ DE CLAVIJO, p. 13, 2004).
Sendo assim, era indicado que os viajantes realizassem seus
deslocamentos em grupos, com várias pessoas e que contratassem certo tipo de
guias locais, para que fossem evitados terrenos inóspitos. Outro conselho,
apresentado nos manuais e livros de viagens, aponta para as épocas próprias
para que uma viagem fosse realizada em determinada região, como é possível
visualizar no livro “Embaixada a Tamerlão”, “O inverno já estava chegando e
durante esta estação o Mar Negro é muito perigoso para navegar [...]” (GONZÁLEZ
DE CLAVIJO, p. 52, 2004).
Além dos riscos físicos e materiais, de acordo com Jônatas Batista Neto
(1988), os autores medievais acrescentavam em seus livros de viagem os perigos
imaginários, como a presença de fantasmas em regiões pouco exploradas pelos
homens, ou até mesmo monstros.
A presença de problemas, perigos e riscos mostra-se mais presente nos
livros de viagens de peregrinos, uma vez que, como comentado anteriormente, é
uma característica da peregrinação a presença de dificuldades a serem
enfrentadas. Entretanto, estas mazelas também são narradas em outros livros,
como em “Embaixada a Tamerlão” (1406).
As vias terrestres e
marítimas
De acordo com Jônatas Batista Neto (1988), os livros de viagens de
peregrinação poucas vezes apresentam informações relacionadas aos transportes,
dinheiro gasto, alojamento, alimentação. Entretanto, a partir de uma leitura
como propõe Carlo Ginzburg (1989), os detalhes são ressaltados e é possível
perceber algumas alusões nos textos acerca das características supracitadas.
Diversos caminhos terrestres, assim como marítimos, foram estabelecidos
na Antiguidade, sendo assim, muitas rotas percorridas pelos homens medievais já
haviam sido desbravadas pelos antigos. Entretanto, devido às transformações
sociais, políticas e econômicas, diversos percursos foram deixados de lado,
porém, muitos outros foram construídos.
Os meios de transporte apresentam-se como um elemento importante nas
viagens medievais. Por terra, eram comuns as viagens a pé ou a cavalo, sendo
que, os veículos com rodas possuíam uma presença insignificante, muitas vezes
utilizados em pequenos trechos, para o transporte de materiais de construção ou
cargas agrícolas.
As vias terrestres, formadas por conveniência, para ligarem um local a
outro, foram melhoradas e expandidas no Império Romano, contudo,
deterioraram-se devido à queda do Império, ocasionando uma diminuição nos
deslocamentos. Entretanto, a partir do século XI, de acordo com Elisa Ferreira
Priegue (1994), com o aumento populacional medieval, houve certa melhora e
foram iniciadas novas construções de estradas.
Porém, o transporte sobre rodas ainda era renegado, por exemplo, pelos
mercadores, pois estes consideravam àquele meio de transporte lento e não
adaptável ao terreno acidentado, comum nas rotas terrestres. Todavia, na
Inglaterra Medieval, tendo sido conservada as estradas Romanas, o uso dos
carros era mais frequente do que no Continente.
Os cavalos, mulas ou jegues eram muito utilizados para o transporte
terrestre. Podemos perceber essa característica quando no livro “Embaixada a
Tamerlão” (1406) é narrado que “Os turcos forneceriam cavalos para transportar
os nossos bens para onde os pagássemos para irem. Ao que os turcos responderam,
poderíamos ter cavalos para o dia seguinte, mas não para aquele dia e
prometeram enviar mensageiros para as aldeias próximas, e assim tudo deveria
ser arranjado” (GONZÁLEZ DE CLAVIJO, p. 54, 2004).
Nas vias marítimas os meios de deslocamento eram as embarcações, dos
mais variados tipos e modelos, como por exemplo, as Galeras e as Carracas, esta
última sendo um dos transportes usados pelos embaixadores de Enrique III
(1390-1406) e até mesmo os Galiotes, um destes utilizados na tentativa dos
viajantes de cruzar o Mar Negro.
Era comum a atribuição à determinados povos do caráter “navegante”, como
por exemplo aos genoveses, como é possível perceber em “Embaixada a Tamerlão”
(1406), uma vez que, no relato de viagem, diversas embarcações pertencem aos
genoveses, de acordo com o autor madrileno. Sendo assim, ao empreender uma
viagem, os viajantes tinham preferencias acerca da origem do dono e/ou capitão
da embarcação.
Como comentado anteriormente, muitas das viagens por meio das águas eram
realizadas em embarcações comerciais. Sendo assim, a demora na realização da
viagem relaciona-se com o tempo dispendido nas ancoragens nos entrepostos para
que fossem comercializados os produtos que estavam sendo transportados.
Referências
Sofia Alves Cândido da Silva – Laboratório de Estudos Medievais (LEM);
Departamento de História (DHI); Universidade Estadual de Maringá (UEM).
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GONZÁLEZ DE CLAVIJO,
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OCHOA, M. A. La Diplomacia Española en su Historia. Boletín Informativo,
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Madrid, n.1, p.217-239, 1984.
Boa noite, Sofia. Parabéns pelo seu trabalho.
ResponderExcluirJá escutei falar de muitos relatos de viagens que existem até hoje, e seu texto fez surgir essa curiosidade de volta. Esses relatos e textos de viagens ou expedições são encontrados tranquilamente, tipo em bibliotecas ou na internet? Os originais ainda existem ou apenas temos contato com as cópias?
Victoria Regina Borges Tavares Melo