BOTCHAN: PERMANÊNCIAS DA CLASSE SAMURAI NA ERA MEIJI
Tiago Tormes Souza
Introdução
Botchan
foi publicado em 1906 por Natsume Soseki(1867-1916),autor que escreveu entre o
final da Era Meiji e início da Era Taisho, sendo seu segundo romance após a
publicação de “Eu Sou um Gato” de 1905.
Botchan
trata-se sobre um jovem professor de matemática oriundo de Tókio que consegue
seu primeiro trabalho em uma escola no interior do Japão, na província de
Shikoku. Seus preconceitos e medos se apresentam nesta cidade interiorana,
vendo com desdém seus alunos, colegas de profissão e outras pessoas do local.
Meu
objetivo com esse trabalho é identificar traços de uma permanência da
mentalidade samurai no início do século XX, anos depois de sua abolição em
1868. Além da relação do “filho de Edo” com os habitantes de Shikoku.
As permanências dos samurais e
conflitos no interior
Botchan
nasceu em uma antiga família samurai sem muitos recursos e prestígio em
consequência da Restauração Meiji.
Sua
relação com familiares foi conturbada, sua mãe o expulsou de casa e acaba
morrendo logo em seguida. Seu pai e irmão passam a culpá-lo pela morte da mãe,
intensificando ainda mais a má relação que já tinham com o narrador-personagem.
A
empregada da família, Kiyo, seria a única a tratá-lo com carinho e afeto, ela o
chamava de botchan: “jovem mestre”.
A relação
dos dois além de ser muito próxima é pautada pela antiga hierarquia do Período
Edo, sendo ela também de uma família samurai afetada pela Restauração. Botchan
não via com bons olhos o favoritismo de Kiyo à seu favor em detrimento do irmão
mais velho. Ele a via de forma inferior:
“Mesmo provindo de uma linhagem nobre
faltava-lhe instrução, algo irremediável”. [2016, p.15]
Não
concordava com os mimos e sonhos que sua empregada depositava no futuro de seu
mestre que “futuramente ascenderia na escala social e me tornaria alguém de
renome” [2016, p.15] de acordo com Kiyo.
A
permanência das relações de suserania e
vassalagem ficam mais claras adiante, com o narrador já adulto. Prestes a
viajar a província de Shikoku, ele visita Kiyo que está morando com seu
sobrinho.
A
segunda metade do século XIX representou uma acelerada modificação da sociedade
japonesa com o aparecimento da indústria, do Estado-Nação e o fim da ordem de
estamentos.
Permanência
está ligado ao conceito de “duração” que para Barros “refere-se ao ritmo, ao modo e à velocidade
como se dá uma transformação no tempo, à durabilidade ou permanência de algo
até que seja substituído por algo novo ou por um novo estado” [p. 247]
Kiyo
fala a todo momento sobre como o seu jovem mestre irá comprar uma mansão quando
retornar à Tokyo e seu desejo de trabalhar para sua família novamente. Nisso, Botchan tece um comentário sobre ela e
o possível embaraço do sobrinho de Kiyo, um escrivão que trabalha em um
tribunal e com com uma situação
financeira estável, diferente de nosso narrador-personagem.
“Ela
era uma mulher das antigas, e entendia a relação entre nós como a existente na
era feudal entre um mestre e um servo. Posto que eu era seu mestre, ela
aparentemente entendia não haver dúvidas de que eu também o era em relação ao
seu sobrinho. Isso o deixava em uma situação embaraçosa”. [2016, p.20]
As classes sociais não seriam tão relevantes para as pessoas mais antigas como Kiyo, independente da Restauração, importando apenas a condição de nascimento, sendo um nobre ou não.
As classes sociais não seriam tão relevantes para as pessoas mais antigas como Kiyo, independente da Restauração, importando apenas a condição de nascimento, sendo um nobre ou não.
A
chegada do personagem à província de Shikoku já se inicia com comparações de
Tóquio e o interior, e os barcos que carregam os passageiros do trem surgem e o
“condutor portava apenas uma tanga vermelha. Que terra de bárbaros. Era compreensível,
pois com o calor que fazia ele dificilmente estaria vestido de quimono”[2016,
p. 23].
O personagem possui muitas contradições,
pois ao mesmo tempo que tratou com inferioridade Kiyo por sua falta de
instrução, ele também carece de uma instrução elevada já que desconhece kanji
:“Logo após o almoço resolvi escrever uma carta para Kiyo. Detesto redigir
cartas, não só por minha caligrafia ser péssima, mas por desconhecer os
ideogramas.” [2016, p. 32]
Independente
de Kiyo ter menos instrução, ela seria uma pessoa muito melhor do que os outros
na província de Shikoku, até mesmo do resto do Japão, pela sua bondade. [...] reverenciar alguém como kiyo.
Apesar de ser uma senhora sem instrução e posição social, é altamente admirável
como ser humano. [2016, p55]
A
relação do narrador com seus alunos é conturbada, o tamanho da cidade diminui a
privacidade do protagonista e seus alunos passam a debochar sobre ele ir ao
restaurante de tempurá e pedir três pratos.
Em
seus momentos de raiva, o protagonista aflora seus preconceitos e a mentalidade
pré-Restauração, então vê todos os seus alunos como provincianos maldosos, como
no trecho abaixo:
“Esses provincianos são incapazes de
fazer a distinção, por isso devem achar natural ultrapassarem os limites.
Vivendo em uma cidade tão pequena, onde basta andar por uma hora para não ter
nada mais para ver, e por não terem outras diversões, alçam esse incidente do
tempurá ao status de uma guerra entre o Japão e Rússia. Pobres coitados. Por
serem educados desde pequenos dessa forma, acabam se tornando nanicos como um
bordo crescido aleijadamente em um vaso. Se pelo menos estivessem rindo por
inocência, eu riria junto. Apesar de serem crianças, já se demonstram uns
pervertidos.” [2016, p.43]
Essa perspectiva é confirmada por Kiyo em
sua carta que diz: “As pessoas do interior tem fama de más e você deve tomar
cuidado para não ser maltratado por elas” [p.103]. Então, no círculo social do
autor existe esse preconceito em relação àqueles que vivem fora de Tóquio e
ainda considerar aqueles que não são oriundos da classe samurai, independente
de sua abolição 40 anos antes. “Nessa pensão os donos eram mais polidos,
simpáticos e refinados do que os Ikagins”, o personagem, independente da comida
ruim e dos recitais de teatro Nô, em que a voz o incomodava. “A distorção da
voz dá uma característica celestial, chegando a expressar(...), um amplo leque
de emoções”. [2008, p.124]
Independente da forma artística, o
personagem tem aversão às formas de arte, ainda mais daqueles artistas fora de
Tóquio. Ele trata a família Hagino, de antigos samurais, com muito mais
respeito do que a família não nobre da pensão anterior.
Anteriormente, o personagem já havia
estabelecido sua diferença por nascimento perante os alunos e ele duvida muitas
vezes da moral dos estudantes e de sua própria profissão como professor. “Que
criatura repugnante. Dá pena pensar que vim de tóquio expressamente para
ensinar sujeitinhos como ele”. [2016, p.43]
O personagem apenas os vê como pessoas
ruins e ignorantes, os atacando em sua imaginação a todo momento.
“Para que, afinal, estão na escola
ginasial ? Entraram para mentir, ludibriar e fazer vilanias às escondidas, para
depois de formados se enganarem, cheios de arrogância, achando que receberam um
boa educação. Ignóbeis insolentes.” [SOSEKI. 2016, p.54]
Para o narrador, os alunos seriam
irremediáveis, eles são simplesmente ignorantes e independente do que se
fizesse eles ainda estariam presos nessa situação de “ignorância”.
“Seria uma vergonha para mim deixar as
coisas do jeito que estão. Seria uma lástima se me dissessem que um filho de
Edo não tem brios. Seria uma desonra para
resto da vida se achassem que eu acabara indo choramingar na cama por
não ter sabido lidar com um bando de pirralhos ranhentos durante meu plantão
noturno. Meus ancestrais foram vassalos diretos do xogum. A linhagem remonta ao
imperador Genji Seiwa, e sou descendente do samurai Manju Tada. Nasci em berço
diferente do desses caipiras.” [SOSEKI. 2016, p.57]
O personagem utiliza então de sua memória
coletiva para se sobrepor às pessoas do interior. Buscando grandes personagens
históricos, de mil anos atrás, para justificar a sua superioridade, já que o
que difere ele, um descendente de samurais, dos comuns seria seu conhecimento
de história. Enquanto uma família nobre possui um registro, os comuns não
possuem nada, sendo insignificantes perante sua posição social.
O personagem ao mesmo tempo traz uma
visão de que o meio influencia as ações dos indivíduos.
“Esse temperamento ignóbil foi forjado
desde a era feudal e tornado costumeiro nesta região, sendo impossível
corrigi-lo por mais que se diga, pergunte ou ensine. Mesmo eu, franco como sou,
se permanecer nesta região por um ano inteiro, decerto acabarei forçado a
imitá-los.” [SOSEKI. 2016, p.144]
O personagem desconsidera a ação dos
séculos sobre sua própria personalidade, apenas apontando os “selvagens” como
alheios a modernidade, sendo contraditório com o sua visão estamentária e moral
com origem no Período Edo.
“Refleti bem sobre o lugar problemático
onde eu viera parar. Pobre professores ginasiais se, para onde quer que fossem,
tivessem de lidar com selvagens como esses. Incrível os professores não se
tornarem uma espécie em extinção.” [SOSEKI. 2016, p.54]
Por fim, ele considera o contato de
professores com as pessoas do interior seriam um desestímulo para educação e a
profissão. Seriam para sempre “bárbaros” e nunca atingiriam um estado de
civilidade que os novos tempos demandam.
Conclusão
Soseki apresenta muitas possibilidades em
seu segundo romance. Botchan é uma ótima fonte para entendermos as
transformações e permanências do Japão Meiji e como a mentalidade daqueles que
estavam em uma situação privilegiada durante o Bakufu Tokugawa.
Além das questões que permeiam os
conflitos entre o campo e a cidade que se intensificam com chegada da industrialização rápida do Japão e
as mudanças culturais consequentes desse novo tempo.
Referências
Tiago
Tormes Souza é graduando em História/Licenciatura pela FURG. Email:
tormes.tiago@gmail.com
BARROS,
José D’Assunção.Dimensões, vol. 32, 2014, p. 240-266
COLLCUT,
M.; JANSEN, M. B.; KIMAKURA, I. Japão. Barcelona: Ediciones Folio, S.A, 2008
NATSUME,
Soseki. Botchan. São Paulo: Estação Liberdade, 2016
Parabéns pelo texto, Tiago! Tem objetivos bem estabelecidos, claros, e que se articulam bem com o corpo do texto. A temática é instigante, sobretudo por tomar como fonte um documento literário (um romance), evidenciando o diálogo entre História e Literatura. Só senti falta de um cabedal teórico mais encorpado, já que você se apoiou em apenas três autores (entendo ser difícil encontrar, aqui no Ocidente, textos e fontes sobre o Oriente).
ResponderExcluirDiante disso, pergunto-lhe: Para além de Botchan, você indica outra(s) obra(s)/autor(es) que trata(m) sobre/estuda(m) as permanências da mentalidade e imaginário samurai no século XX?
Att.,
Fábio Alexandre da Silva e Graziele Rodrigues de Oliveira
Boa tarde, caro Sr. Souza.
ResponderExcluirAcabei de ler seu trabalho e me recordei de outros, que podem lhe ser úteis em pesquisas futuras. Seguem os links:
http://bdtd.ibict.br/vufind/Search/Results?lookfor=natsume+soseki&type=Subject
https://www.revistas.usp.br/ej/issue/archive
Na revista Estudos Japoneses, há diversos artigos referentes à literatura nipônica, sendo um ou outro sobre Soseki. Basta dar uma olhada nas edições.
Espero que o material lhe seja de boa utilidade.
Te desejo muito sucesso em sua jornada acadêmica!
João Antonio Machado