Joanes Rocha


AS DUAS FACES DA IMPERFEIÇÃO: O CHOQUE DE VALORES ESTÉTICOS ENTRE OCIDENTAIS E JAPONESES NOS SÉCULOS XVI E XVII
Joanes da Silva Rocha

Em meados do século XVI, os lusitanos foram os primeiros europeus a pisar nas ilhas do atual arqueólogo japonês e difundir os princípios estéticos e filosóficos do velho mundo. E, juntamente com este contato, o nascimento de uma querela entre portugueses e japoneses sobre a “verdade da imperfeição” estética. Assim, neste estudo, buscaremos distinguir e compreender o embate entre duas visões de mundo sobre os conceitos de beleza e perfeição: o valor europeu de “beleza como perfeição e etérea” em contraste ao valor japonês de “beleza como imperfeição e efêmera”, principalmente inferida a partir do conceito de wabi-sabi (侘び寂び). Para tal, tomaremos como ponto de partida o livro Nihon kyōkaishi (日本教会史) escrito pelo jesuíta João Rodrigues Tçuzu nos primórdios do século XVII, e, a partir dele, dialogar com outros autores e clássicos no ocidente e oriente.
Introdução
João Rodrigues nasceu em Sernancelhe, Portugal, e viajou para o Oriente ainda jovem chegando ao Japão em 1577, trinta e quatro anos após os primeiros mercadores portugueses que aportaram em Tanegashima abordo de um junco chinês em setembro de 1543. (Lidin, 2004, pp. 1-3) Engajado em diversos serviços ordinários e administrativos, Rodrigues foi Procurador de Nagasaki, intérprete do Visitador Geral das Índias Alessandro Valignano, e após exilado para Macau em 1610, envolveu-se no debate sobre a Pedra Nestoriana e na Controvérsia dos Ritos Chineses. Veio a falecer em 1633, e lhe são creditadas as obras Nihon daibunten (日本大文典), “Arte da Lingoa de Iapam”, primeira gramática de Japonês em idioma europeu, português, no caso, e Nihon kyōkaishi, “História da Igreja no Japão”. (Cooper 1994, pp. 66-67, 323-326; Oka, 2007, pp. 160-161)
Na obra de Tçuzu, lemos como a área cultivada de Camellia Sinensis necessária para o chá no Japão era escassa e sua importação do nordeste da Índia e do sul da China muito onerosa. Também encontramos o relato de que o cha-no-yu (茶の湯), que literalmente significa “água quente para o chá”, ou Sadō (茶道) “caminho do chá”, tornou-se comum em toda área de Kansai como remédio entre as classes altas tais como imperadores, shōguns, e monges. Assim como lemos que entre os chineses e japoneses o chá era “uma das principais cortesias com que se entretém um hóspede”. (Rodrigues, 1967, p. 355)
Todavia, Tçuzu sugere que foi durante o período de Oda Nobunaga que houve uma rápida evolução da cerimônia do chá em duas tradições completamente diferentes: o primeiro era o suki praticado por samurais em grandes cidades como Miyako, atual Kyōto, e Ōsaka sob a influência da cultura da corte. E uma segunda forma de apreciação conhecida como wabicha ou vabizuchi (侘数寄) desenvolvida por monges e mercadores em pequenas cidades como Sakai, incluindo Takana Sōeki, mais conhecido como mestre Sen no Rikyū. (Rodrigues, 1973, pp. 76-77; Sharpe, 2008, pp. 187-188)
Suki e Cha-no-yu
Embora Rodrigues não mencione diretamente o nome do grande mestre Rikyū em seus livros ou cartas, concordamos com Hioki (2008, p.16) ao dizer que Tçuzu foi largamente influenciado pelo pensamento de Rikyū e outros mestres de Sakai. E notamos isso na forma como ele descreve não apenas o local, mas a éthos e a psique japonesa que vai servir de suporte para suas reflexões acerca do que é belo e perfeito.

そしてまた、その他の事情が起きて、茶の湯に精通した堺のある人たちは、幾本かの小さな樹木をわざわざ植えて、それに囲まれた、前よりも小さい別の形で茶の家を造った。そこでは、狭い地所の許す限り、田園にある一軒屋の様式をあらわすか、人里離れて住む隠遁者の草庵を真似るかして、自然の事象やその第一義を観照することに専念していた。
“Além disso, outra informação relevante é que existem certos homens de Sakai versados em cha-no-yu que construíram uma casa de chá de outra forma. Era menor, como o pequeno espaço permitia e ficava entre algumas pequenas árvores plantadas para esse fim no estilo das casas solitárias encontradas na zona rural ou como as celas de solidão que habitam os distantes eremitas que se entregam à contemplação do campo, das coisas da natureza e sua primeira causa”. (Rodrigues, 1967, p. 275, tradução nossa)
Aqui notamos o ponto inicial do debate em Tçuzu sobre a estética japonesa que ele define com a busca da simplicidade, austeridade e aspecto rústico do wabicha por meio da construção de espaços bucólicos em áreas urbanas na procura daquilo que ele e outros autores com Luiz Frois e Valignano ressaltaram como “o desejo japonês pelo solitário e melancólico”. Assim, possivelmente influenciado pelos pensamentos de Rikyū por meio de Takayama Ukon, é possível ver como os ensinamentos de Rikyū sobre wabicha eram constantemente referenciados por Tçuzu. Por exemplo, em um certo ponto do texto, Rodrigues resume o que ele considerou ser as três características principais do suki (数奇), que são, precisamente, alguns dos pilares conceituais defendidos por Rikyū:

第一はすべてにわたる最上の清潔さである。
第二は田舎風の孤独と飾り気なさであって、あらゆる種類にわたって多くの無駄なものから遠ざかることである。
第三の重要な役割は、自然的なものと人為的なものとがそれぞれに数奇の目的に対して持っている自然な調和と一致、隠れた微妙な性質に関する知識および学問である。
“O primeiro é a excelente limpeza em todos os lugares.
A segunda é a solidão e o ornamento rurais, que procuram se afastar das coisas inúteis de todos os tipos.
A terceira parte é a importância do conhecimento e da aprendizagem sobre a harmonia natural, e o aspecto naturalmente sutil e oculto inerente das coisas artificiais e naturais”. (Rodrigues, 1967, pp. 636-637, tradução nossa)

No entanto, apesar de ser capaz de compreender a importância do suki dentro do pensamento filosófico japonês, valorizar sua limpeza, esforço para produzir uma tipologia natural e bem feita, é possível ver a distância com que Tçuzu tratava o valor estético do wabisuki dizendo que “(...) ele é um tipo de suki pobre que imita, o mais próximo possível, os propósitos do suki genuíno.” E na frase seguinte, ele explica a razão para tal diferença: “Não é todo tipo de pessoa que pratica o suki apropriado porque envolve muitas coisas valiosas, (...).” Além disso, ele também escreveu que esses objetos e lugares eram esteticamente feios e sem qualquer atração. Como podemos ler nos seguintes trechos:

このもてなしに用いられる器物や陶器は、金製でも銀製でもなく、、まったく光沢も製飾もない粗末な陶土と鉄のものであって、また光沢や美しさのために、自然にそれが欲しくなるような欲望をそそる物でもない。しかしながら、日本人はその憂愁な気質、彼らの物の考え方。そのために、とるに足りない陶土でできているにもかかわらず、一万、二万、三万クルザード、さらにそれ以上の価格に達するものもある。他の民族がこのことを聞けば、狂気で野蛮なことと思うであろう。
“Os vasos e cerâmicas usados não são de ouro ou prata, (...) são de textura grosseira de porcelana e ferro, que não tem brilho ou decoração, e por causa de seu brilho e falta de beleza, eles não causam um desejo natural por eles. No entanto, os japoneses têm esse temperamento melancólico e é o modo de pensar deles (...). Por isso, apesar de ser feito de barro, há objetos que podem custar dez mil, vinte mil ou trinta mil cruzados e ainda mais. Algo que se outras pessoas ouvirem isso acharam que é loucura e barbaridade”. (Rodrigues, 1967, pp. 590-591, tradução nossa)

その建築は全然金がかかっていないように思われるので、その家を建てるだけで、それにふさわしい材料に、数百クルザードもかかるとは信じられない。
“O edifício é idealizado para não ter nenhum elemento em ouro, então, para construir a casa com materiais apropriados, centenas de cruzados são gastos, algo inacreditável”. (Rodrigues, 1967, p. 612, tradução nossa)
        
De tal modo, o que consideramos hoje como uma das tradições estéticas mais expressivas e importantes do Japão, o wabi-sabi, foi visto pelos portugueses da época como sem valor e sem sentido, como escreveu Luiz de Almeida: “O recipiente para o chá em pó, (...) é um tesouro japonês, assim como anéis, colares e joias de preciosos rubis e diamantes entre nós”. (Cooper, 1995, p. 262) Mesmo Valignano, um ávido defensor da cultura nipônica e do processo de aculturação na Ásia, depois de ver um bule de chá que custara catorze mil ducados ao daimyō Ōtomo Yoshishige, escreveu que “na verdade, eu não daria mais do que um ou dois centavos”. (Ibidem).
A querela do belo e perfeito
Então, como podemos explicar essa aversão dos portugueses, incluindo Tçuzu, aos objetos utilizados na cerimônia do chá? Mesmo fazendo muitos elogios à cultura do chá em si e seus benefícios para a saúde. A resposta está escondida no contexto cultural e estético dos mestres na Europa e no Japão. E para responder a essa interrogação, iremos partir do pensamento de Marcia Eaton e sua compreensão do conceito de apropriação cultural e estética que diz: “A é uma propriedade estética de X se e somente se A for uma propriedade intrínseca de X considerada digna de atenção (percepção e/ou pensamento) na cultura C.”
A partir disso, podemos deduzir que Tçuzu foi capaz de compreender o aspecto moral do suki e elogia a forma pela qual os japoneses conduziam a cerimônia porque ele possuia este mesmo sentimento em sua própria cultura. De fato, Tçuzu escreveu como a serenidade e a calma do cha-no-yu eram semelhantes ao estilo de vida eremita europeu (僻地の隠者) e, por isso, seria usado entre os monges no Japão para ajudar na castidade e melhorar sua vida espiritual.  (Rodrigues, 1967, p. 622) Além disso, havia dentro da casa de chá um espaço chamado tokonoma (床の間) onde tradicionalmente se colocavam pergaminhos (掛け物 kakemono) e flores (生け花ikebana) (Prusinski, 2012), contudo, aos moldes da experiência cristã de Takayama Ukon, imagens católicas poderiam ser colocadas ali e isso se assemelharia muito a um claustro europeu para reza e reflexão.
Em contraste, a razão pela qual Tçuzu e os outros autores foram incapazes de reconhecer o valor estético do wabi-sabi pode ser explicado por uma distinção abrupta sobre o que é ser perfeito. Por um lado, o senso japonês sugere que as formas imperfeitas e assimétricas eram entendidas como perfeição estética ao passo que o senso europeu defendia que as formas imperfeitas deveriam ser vistas como imperfeição estética. Na esteira deste pensamento, é notório que a arte do cha-no-yu foi largamente influenciada pelo xintoísmo e budismo, especialmente pela linha Zen, ao ponto de se dizer que eram uma e a mesma coisa (茶禅一味chazen ichimi). No entanto, indo mais afundo no budismo, é possível perceber como o wabi-sabi é um aspecto estético-filosófico desenvolvido a partir do conceito budista das “Três Marcas da Existência” (Ipitaka, 2000, pp. 257-258), onde lemos:

All things composed are impermanent. As soon as one sees (it) with wisdom, then of the suffering, he was overwhelmed; this is the Way of Purification.
All things composed are unsatisfactory. As soon as one sees (it) with wisdom, then of the suffering, he was overwhelmed; this is the Way of Purification.
All things of nature are insubstantial. As soon as one sees (it) with wisdom, then of the suffering, he was overwhelmed; this is the Way of Purification.
277 Todas as coisas compostas são impermanentes. Tão logo alguém vê (isto) com sabedoria; então do sofrimento ele se enfastia; este é o Caminho da Purificação.
278 Todas as coisas compostas são insatisfatórias. Tão logo alguém vê (isto) com sabedoria; então do sofrimento ele se enfastia; este é o Caminho da Purificação.
279 Todas as coisas da natureza são insubstanciais. Tão logo alguém vê (isto) com sabedoria; então do sofrimento ele se enfastia; este é o Caminho da Purificação.

Portanto, todas as coisas (sankhāra) são impermanentes (aniccā), insatisfatórias (dukkha) e insubstanciais (anattā), compondo as bases da Concepção de Impermanência (aniccānupassanā), um dos pilares mais importantes da percepção japonesa da arte. Como expressado no dizer ichigo ichie (一期一会), “um momento, um encontro”. Assim, o termo original para a impermanência que é a expressão aniccā advoga que todas as coisas são impermanentes, exceto o nirvana que é informe e incondicionado. Isso porque o princípio da Contemplação da Impermanência é, em última instancia, a noção de surgimento e dissolução, em outras palavras, eles vêm a ser e, tendo sido, desaparecem. (Ipitaka, 2000, p. 243)
Segundo Juniper (2003, p. 24), a educação e a filosofia ocidentais se baseiam no dualismo entre o “eu” e o ambiente externo, enquanto a filosofia Zen é baseada na ideia de “nós” como parte de um todo. De tal modo que a fabricação de uma obra wabi-sabi envolve muito mais do que apenas inspiração ou mimesis da natureza, envolve também a contribuição da própria natureza através de suas forças físicas e químicas. Em outras palavras, durante a produção de um pote de cerâmica, o material, nuances de temperatura ou a posição em que a peça foi colocada na fornalha podem influenciar no formato, cor e aspecto da peça, tornando-a única e distinta.
Portanto, o aspecto natural da assimetria (左右非対称) e da forma imperfeita (不完全な形) (Imai, 2011, p. 14) da peça é vista dentro do wabi-sabi como o símbolo da individualidade e singularidade da peça, embora tenha sido entendido pelos ocidentais como falhas, isso porque a própria base das Três Marcas da Existência estavam em clara oposição à tradição dos jesuítas que argumentam que tudo vem de Deus, que é eterno (não anicca), perfeito (não dukkha), e como está escrito na Bíblia em Êxodo 3:14 “Eu sou quem eu sou” (logo não atattā também).
A disciplina “Estética”, como a conhecemos, começou no século XVIII com as investigações do filósofo alemão Alexander Baumgarten em sua dissertação Meditationes philosophicae de nonnullis ad poema pertinentibus, na qual ele advogava por um campo de estudo que utilizasse métodos específicos na busca de entender como as coisas eram conhecidas e reconhecidas por meio dos sentidos. Desse modo, ele buscava desvincular a estética da filosofia geral aos moldes da lógica que já possuía um ramo próprio de pensamento em sua época.
Contudo, como apresentam Panofsky (1994, p. 16) e Mothersill (2008, p. 196), desde o mundo antigo, o Ocidente tem refletido acerca da relação entre o homem, a criatividade e o mundo ao seu redor. Platão, por exemplo, defendia que o eidos, ou “Ideia”, era a fonte das formas para todas as realizações humanas e que elas se materializavam de maneira imperfeita na matéria, e, quando reproduzidas pelo pintor, alcançam o pior da mimese e seus praticantes deveriam ser expulsos das cidades. Isso está presente na conversa entre Sócrates e Glauco sobre a natureza da cama no Livro X de A República, que é na verdade um introito a sua crítica à Homero. Sócrates define “deus” como o criador da natureza do objeto, ao marceneiro, é dado o título de obreiro por Glauco, que, seguindo o pensamento de Sócrates, reconhece o pintor como um imitador afastado em 3° grau da natureza do objeto.
Esse pensamento antigo possui dois pontos aparentemente opostos. O primeiro é que a obra de arte era inferior à natureza por não ser capaz de exprimi-la por completo, e uma segunda visão que a colocava como superior à natureza, pois podia corrigi-la, já que, diferente da natureza, o homem tinha acesso ao conceito de “belo” presente no mundo das Ideias. Mas Aristóteles pensava diferente, visto que para ele a obra de arte preexistia na alma de seu criador antes de penetrar na matéria como um arquiteto concebendo e imaginando uma casa em seu espírito antes mesmo de materializá-la. (Panofsky, 1994, p. 28)
Dessa forma, notamos que apesar da diferença entre a origem da ideia, seja no mundo das Ideias como defendia Platão, ou interna como uma centelha defendia Aristóteles, ambas as teorias são marcadas não apenas pelo humilde copista da natureza, mas também seu êmulo, que intervém sobre as “imperfeições da natureza” por meio da criatividade, técnica e harmonia matemática. Segundo Noël Carroll (2008, pp. 163-171), a arte é um dos meios mais importantes para aculturar os povos na éthos de sua sociedade e, em certa medida, moldar a própria moralidade em questão, como se nota no mundo antigo e medieval. Levando-nos à matriz cristã de Tçuzu, que foi influenciada pelas correntes Platônicas e Aristotélicas.
Nas obras de Santo Agostinho, notamos a maneira como as ideias platônicas encontram espaço ao substituir o conceito de “campo das ideias” pela palavra “Deus” e dEle a emanação de todas as ideias, fazendo de nós, humanos, mediadores entre Ele e a matéria. Na esteira desse pensamento, notamos como o sentido cosmológico presente na antiguidade foi gradativamente se transformando numa questão teológica no qual, para Agostinho, uma “pessoa” era melhor do que outra se ela amasse coisas melhores, ou como colocaria Platão no mito da caverna, quando descobrimos a verdade sobre as coisas e não mais suas sombras.
Aristóteles, por sua vez, é retomado pela escolástica nas ideias de Tomás de Aquino, contudo, no lugar de um “deus interior”, o que certamente seria lido como heresia, Aquino advoga na Summa Theleologica a centelha divina da criação, o que encontra fundamento na própria Bíblia já que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus e Ele foi o grande criador do universo. Dessa forma, Aquino retoma argumentos apresentados por aristotélicos como Fílon e Plotino de que há dois modos de se produzir algo. Um primeiro por meio das coisas preexistentes, como o homem que engendra o homem ou o fogo que engendra o fogo, e uma segunda forma que é naqueles que agem pelo espírito que preexiste como uma entidade intangível, o que seria análoga à contemporânea ideia de “criatividade”, pois, como coloca Dante, “A arte encontra-se em três níveis: no espírito do artista, no instrumento que ele utiliza e na matéria que recebe sua forma da arte.” (apud Panofsky, 1994, p. 44)
Assim, as “imperfeições” orientais divergem do pensamento ocidental cujas peças distorcidas, assimétricas ou extremamente naturais eram lidas como erros e descartas. Desde os tempos bíblicos, a natureza, especialmente a inóspita, era entendida por um duplo significado no mundo monoteísta do Ocidente e do Oriente Próximo. Se por um lado a natureza era símbolo do indomado, repleto de perigos e que deveria ser evitado, por outro lado ela também era percebida como local de redenção eremítica que precisava ser mantida como um santuário espiritual, mas não, necessariamente, inalterada.
Por último, leiamos então dois versos, o primeiro extraído da Bíblia em Isaías 40:4-5: “Todo o vale será exaltado e todo o monte e todo o outeiro será abatido; e o que é torcido se endireitará, e o que é áspero se aplainará. E a glória do Senhor se manifestará, (...).” E o segundo apresentado pelo mestre Rikyū: “Arranje as flores como se elas fossem encontradas no campo”. (apud Tanaka, 1973, p. 145) Ao lê-los, não é estranho entender porque encontramos nos documentos dos primeiros europeus, inclusive Tçuzu, argumentos explícitos de que os japoneses eram “ingênuos”, “bárbaros” ou “apreciadores daquilo que não tem valor”, pois, como escrito na bíblia e toda uma construção estética ocidental desse os gregos, não cabe ao homem reproduzir a natureza, mas transformá-la e aperfeiçoá-la. 
Conclusão
Como apontou Duarte Junior (1991, p. 89), de um modo ou de outro, todos nós educamos nossos sentimentos a partir dos códigos estéticos presentes em nosso tempo e cultura. E durante o tempo de Tçuzu isso não foi diferente. Um homem que sintetiza tantos outros europeus de seu tempo capazes de entender os aspectos imateriais e a importância do cha-no-yu dentro da éthos japonês, mas que em virtude das diferenças culturais e estéticas não reconheceram a beleza do wabicha.
Como resultado, podemos notar claramente o choque entre duas visões de mundo sobre a beleza. O valor europeu baseado na simétrica, lei áurea e materiais raros da Europa cristã na era do mercantilismo numa constante busca pela perfeição que se mostrava muitas das vezes imperfeita, em conflito direto com o wabi-sabi que elogia os valores de simplicidade e assimetria expressos em materiais modestos, conceito este presente no yamatomono, que poderíamos entender como uma perfeita aceitação da imperfeição das coisas.
Referências
Joanes da Silva Rocha é bacharel em História (UnB) e Arquitetura e Urbanismo (FAUPlac), mestre em Teoria e História da Arquitetura (PPG-FAU-UnB) com intercâmbio no Japão. Atualmente, é professor assistente de Teoria e História da Arquitetura, arquiteto do ICOMOS-Brasil e pesquisador do Núcleo de Estudos Asiáticos da Universidade de Brasília (NEASIA-UnB) com enfoque em patrimônio lusitano no Oriente (Japão e Macau) e sua salvaguarda.
E-mail: joanesrocha@gmail.com

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6 comentários:

  1. Então o Suki é uma cerimônia que preza pela extrema limpeza e perfeição dos objetos, e o Wabi sabi é uma cerimônia que valoriza a simplicidade e a singularidade dos objetos?
    Tiago Motta

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    1. Olá Tiago, obrigado pela pergunta e desculpe-me se meu texto lhe confundiu. Tanto Suki como o Wabi sabi são princípios estéticos que podemos observar nos objetos e condução da cerimônia do Chá e outas cerimônias. Logo, ambos os conceitos são tão abstratos quando o próprio senso de “belo” ou “simples”. Mas, permita-me pontuar e definir como poderíamos entender estes três termos.

      O termo wabi [侘び] vem do verbo waburu, que originalmente significava "declinar para um estado de tristeza e abandono”, como foi utilizado na primeira antologia poética chamada Man’yōshū, concluída em 759 d.C, assim como na peça de teatro Nō de Kan’ami Kiyotsugu (1333-1384) chamada Matsukaze e nos poemas waka de Fujiwara no Teika (1162-1241). No entanto, foi a partir do período Higashiyama no final do século XV que o termo wabi passou a ser lido “positivamente” dentro dos conceitos de “pobreza” e “simplicidade” nas obras de Saigyō (1118-90), Kamo no Chōmei (1153-1216) e, especialmente, por meio da atuação do grande mestre Jukō.

      Então, sobre o termo suki [数奇], ressalto novamente o mestre Murata Jukō, quem deu início à mudança dos valores estéticos exclusivamente chineses ricos em cor e texturas em prol da valorização gradual dos elementos japoneses cujo a base foi o suki e apreciação do Wabi. Em outras palavras, este “gosto” pelas coisas presentes no termo suki é justamente o momento de inflexão quando “O conceito da beleza do imperfeito deu nova profundidade às velhas atitudes que só significavam apego às coisas.” (TERAOKA Miyoko. The Japanese Tea Ceremony and Christianity: (…), Doctoral Disseratation, Seton Hall University. 1984, p. 39) Ou seja, aqui temos a distinção entre “apreciar um objeto antigo” ou simplesmente não quere se desapegar dele.

      O termo sabi [寂び], por sua vez, é constantemente traduzido pelas palavras “rústico”, “elegância”, “simplicidade” e “platina”, que é justamente o efeito que ocorre no metal quando envelhece. Este conceito tem suas origens no próprio ascetismo budista acerca da fugacidade e evanescência da existência humana que, no Japão, podem ser expressos pelo termo mujōkan ou na palavra sabishi [寂しい] que é o adjetivo de “triste”.

      Em outras palavras, wabi está dentro de um sistema metafísico budista que foca em princípios filosóficos e estilo de vida, enquanto sabi possui um apelo material, empírico e visível. Entretanto, apesar de reconhecer tais diferenciações, utilizei o termo de maneira indissociável, isso porque, em momento algum Tçuzu fez tal distinção e busquei utilizá-lo em seu sentido o mais amplo possível em prol de abranger as mais diversas descrições de Tçuzu.
      Espeto ter clareado um pouco mais sua compreensão.
      Abraço
      Joanes R.

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  2. Parabéns pelo texto! Muito elucidativo nas questões apresentadas! Gostaria de saber, se puder estender a discussão, como o ethos japonês e as virtudes ocidentais dialogam quando a imigração japonesa para o Brasil vai se consolidando e a cultura nipo-brasileira vai se instituindo pelo país. Essa contradição sobre a perfeição e imperfeição, evidente muitas vezes nos valores da comunidade nipônica em relação a fazer tudo correto, a cumprir as regras, e seguir normas para o bem coletivo, muitas vezes se difere a esse pilar citado sobre as Três Marcas da existência. Poderia se denominado de aculturação? Hibridismo? Sincretismo Cultural? Gostaria de saber suas ideias sobre isso! Grata desde já!

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    1. Olá Vivian Iwamoto,
      Respondi na questão abaixo.

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  3. Parabéns pelo texto! Muito elucidativo nas questões apresentadas! Gostaria de saber, se puder estender a discussão, como o ethos japonês e as virtudes ocidentais dialogam quando a imigração japonesa para o Brasil vai se consolidando e a cultura nipo-brasileira vai se instituindo pelo país. Essa contradição sobre a perfeição e imperfeição, evidente muitas vezes nos valores da comunidade nipônica em relação a fazer tudo correto, a cumprir as regras, e seguir normas para o bem coletivo, muitas vezes se difere a esse pilar citado sobre as Três Marcas da existência. Poderia se denominado de aculturação? Hibridismo? Sincretismo Cultural? Gostaria de saber suas ideias sobre isso! Grata desde já! Att. Vivian Iwamoto

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    1. Olá Vivian Iwamoto,
      Obrigado pela pergunta. Acredito que os elementos que você comentou como cumprir as regras, e seguir normas para o bem coletivo sejam de fato parte da ethos japonesa, mas visualizo muito pouco isso nas Marcas da existência. Na verdade, se olharmos profundamente podem ser até contraditórias, pois se pensarmos que nada é constante, por que deveríamos respeitar as normas sociais? Cumprir as regras consiste justamente em acreditar que eu faço a minha parte e você a sua. Creio que esta ethos rígida tenha suas bases no muito mais no bushi dos samurais que no pensamento dos monges budistas. Sim, a maioria dos primeiros mestres do chá eram monges budistas e usavam vários destes elementos durante a meditação.
      Contudo, crio que esta cultura nipo-brasileira poder ser todos os elementos que você disse em esferas diferentes. Por exemplo, vestir um Kimono para a festa é aculturação pois importamos a forma “original”; quando comemos um sushi de morango é hibridismo, não existe em sua forma original no Japão; quando que professa o cristianismo, judaísmo ou islamismo vai no Festival Obon seria um Sincretismo Cultural.
      Espero ter dialogado com sua pergunta.
      Abraço
      Joanes Rocha

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