A QUESTÃO
DO REGISTRO HISTORIOGRÁFICO NA LITERATURA SÂNSCRITA DA CULTURA HINDU
Matheus
Landau de Carvalho
Um dos axiomas mais constantes em estudos indológicos é o de
que as tradições hindus nunca possuíram um senso de história. Desde os relatos
do geógrafo grego Megástenes (“Indica”, séc. III A.E.C.) e de Lúcio Flávio Arriano Xenofonte (c.
92-175 E.C.), de monges budistas chineses em viagem ao subcontinente indiano,
como Fā-hien (século V E.C.), Hiuen Tsiang (século
VII E.C.) e I-tsing (635–713 E.C.), passando pelo “Tahkīk-i-Hind”,
de Abū Rayḥān Muḥammad ibn Aḥmad Al-Bīrūnī, e por
autores britânicos, tais como James Mill (“The
History of British India”, 1817), Arthur Anthony Macdonell (“A History of Sanskrit Literature”, 1900), Arthur Llewellyn Basham (“The Wonder that was
India”, 1954), entre outros, sem deixar de mencionar pensadores germanófonos,
como G. W. F. Hegel (1770-1831) e K. H. Marx (The
Future Results of British Rule in India. “New-York Daily Tribune”, 8
de Agosto de 1853), há recorrentes assertivas de que
sempre houve, entre os hindus, uma ausência de i) cronologia, ii) de história,
iii) de um senso de história, iv) de uma historiografia, e v) de uma teoria da
história, aspectos que contribuíram para constituir, nos moldes da cultura
ocidental, a História como projeto de ciência e disciplina acadêmica.
Contudo, alguns estudos recentes têm se debruçado sobre a
perspectiva de identificar, na cultura hindu especificamente, manifestações
literárias que, de alguma maneira, se aproximam, nas tradições historiográficas
ocidentais, desde Heródoto de Halicarnasso e Tucídides e Atenas até à “École
des Annales” e a Nova História, do que se denomina de historiografia. O
objetivo desta Comunicação é apontar para algumas destas manifestações
literárias hindus, assim como para o modo pelo qual são abordadas e explicadas
por historiadores indianos através de
categorias e conceitos genuinamente hindus, no intuito de perceber uma
determinada cultura de registro documental de acontecimentos históricos e usos da memória no subcontinente
indiano.
As
tradições religiosas hindus se destacam no cenário religioso mundial por
constituírem um dos mais antigos e dinâmicos conjuntos de tradições culturais
da humanidade ainda existentes. A seguir sugere-se uma definição de um ponto de
vista técnico formal sobre o que é o Hinduísmo enquanto uma destas grandes
tradições da humanidade:
“Os termos “hinduísmo” e “hindu” começaram a ser usados
pelos islamitas que habitavam a região da Pérsia como designações religiosas
que diferenciassem os muçulmanos aquém do rio Indo (em sânscrito sindhu, lit. “mar”, “oceano”) dos
não-muçulmanos que habitavam além do mesmo rio. Após o estabelecimento soberano
dos muçulmanos sobre grande parte do subcontinente indiano, os britânicos se
apropriaram, a partir do século XVIII, destes termos como denominadores comuns
para se referir a vários segmentos religiosos distintos entre si então
presentes na região, contribuindo para sua divulgação e uso amplamente
estabelecidos (Rodrigues, 2006, p. 4). Por Hinduísmo compreende-se um conjunto de expressões culturais
singulares que
tendem a se adequar às diversidades regionais, históricas, individuais e
comunitárias oriundas do subcontinente indiano, segundo uma pluralidade de tradições com suas
comunidades de praticantes, seus sistemas de atos, seus conjuntos de doutrinas
e seus processos de sedimentação de experiências, revelando uma flexibilidade e uma
abertura acostumada à coexistência de opostos nas
esferas ritualística [...] e mística”. (Carvalho, 2017, p. 234, n. 3, itálicos
do autor)
A historiadora indiana Romila Thapar, em seu texto
intitulado “Society and Historical
Consciousness: The ‘itihāsa-purāṇa’ Tradition” [Sociedade e
Consciência histórica: a tradição itihāsa-purāṇa], aponta para duas formas de consciência histórica
perceptíveis em cada cultura. Uma é a “história incrustada” (“embedded
history”), forma na qual a consciência histórica de uma cultura encontra-se em
mitos (seu modo mais profundo), épicos, panegíricos e genealogias, tal como os
veios numa rocha, com informações relativas ao passado da respectiva cultura e
aos comentários de cada momento presente, subsequente no tempo, que lhe aborda
e dele se apropria. Para Thapar, na Índia antiga, a consciência histórica
desenvolveu-se a partir de determinada história incrustada.
Dentre outras razões, o mito revela a maneira pela qual uma
cultura constrói uma imagem de si mesma, tais como mitos cosmogônicos presentes
em alguns Brāhmaṇas, Dharmaśāstras e Purāṇas;
ou o modo pelo qual ela elabora sanções sociais, como no caso do Puruṣasūkta, hino
ṛgvédico dedicado ao surgimento dos varṇas, estratificações sócio-ocupacionais
que, recorrentemente, são traduzidos pelo termo ocidental casta; ou ainda
refletem a legitimação de uma mudança política e social, como na estória de Pṛthu, no Mahābhārata.
A outra forma de consciência histórica é a “história
externalizada” (“externalized history”), a qual tende a revelar a história
incrustada e ser mais consciente de seu uso deliberado, calculado do passado
por lideranças políticas e elites sociais, tal como em crônicas familiares,
institucionais ou regionais, e também biografias de autoridades. Na visão de
Thapar, “Na articulação da
consciência histórica no início da sociedade no norte da Índia, as formas
verdadeiramente incrustadas são evidentes na
literatura da sociedade baseada na linhagem, caracterizada pela ausência de formação do Estado, e as formas
mais livres ou externalizadas emergem com a transição
para os sistemas de estado.” (Thapar, 1992, p. 139)
É possível conjugar estes intrumentos de análise de Thapar
com alguns tipos de documentos que revisões historiográficas recentes têm
destacado como exemplos, ainda que esparsos, de uma determinada cultura de
registro documental de acontecimentos históricos no subcontinente indiano, a
saber, os vaṃśas, os vaṃśāvalīs, os caritas, os dāna-stutis, os ākhyānas, os kathās, e a tradição itihāsa-purāṇa.
Os vaṃśas são listas sucessórias de mestres, como nos textos
védicos, ou de dinastias régias, comportando certas percepções do passado: “A genealogia como
um registro de sucessão estava no centro da tradição épica e ligava o épico à
história incrustada, assim como à [tradição] itihāsa-purāṇa e às formas históricas
posteriores. A genealogia é usada por novos grupos em ascensão para legitimar
seu poder e reivindicar conexões com aqueles que estavam no poder.” (Thapar, p. 157).
Os vaṃśāvalīs são
genealogias de linhagens e dinastias conhecidas até meados do primeiro milênio
E.C., de regiões locais, específicas, com comentários sobre o status social de
famílias governantes. Preservam o registro de relações sociais e políticas
percebidas em determinado momento histórico, incorporando muito do que
acredita-se como historicamente preciso: “Isso é reunido em uma estrutura distinta
que não apenas dá forma ao passado, mas também se torna uma carta de sanção
para as instituições sociais existentes, bem como uma licença em potencial para
reivindicações futuras de legitimidade e status.” (Thapar, 1992, p. 160)
Os caritas são biografias históricas
que servem como complemento aos vaṃśāvalīs, com ênfase na figura do rei, visto
como centro da autoridade de um sistema estatal de níveis concêntricos, como o
“Harṣacarita” de Bāṇabhaṭṭa, por exemplo. Majoritariamente
escritos entre os séculos VIII e XII E.C., eram elogios a monarcas que
contribuíam não apenas com suas famílias em particular, mas também com a
consolidação dos reinos e da realeza: “A retórica do elogio, após desconstruída,
sem dúvida revelaria múltiplas relações dentro de um edifício cortês de normas
e ações, e, apesar da ambiguidade em apresentar dados históricos difíceis,
muito da sutileza da nuança histórica pode ser obtida dessas biografias.”
(Thapar, 1992, p. 167). Os caritas destacavam dois aspectos, quais sejam, o rei
como o foco da corte, e uma consciência clara de uma área geográfica muito bem
delimitada, que constituía o reino em si, intrinsecamente identificada com a
dinastia em questão.
Os dāna-stutis são elogios da
generosidade de ações de líderes e divindades realizados por sacerdotes e
bardos védicos (Ṛgveda Saṃhitā V,27; V,30; VI,47; VI,63; VIII,1; VIII,5;
VIII,6). Não eram apenas elogios de
ações passadas, mas também indicavam o que se esperava de um chefe (rājās)
ideal, “numa sociedade onde as incursões eram um grande acesso à propriedade e
onde a riqueza era computada em cabeças de gado e cavalo, em carruagens, ouro e
jovens escravas” (Thapar, 1992, p. 144)
Os ākhyānas são ciclos de estórias recitadas durante os sacrifícios
rituais (yajñas), cujos protagonistas são membros de famílias governantes
(rājanyas e kṣatriyas). São narrativas
comemorativas sobre suas vidas e atividades, incidentalmente fornecendo
informações sobre as respectivas linhagens, tais como o fato de algumas
linhagens se transformarem em confederações de tribos, e também sobre as
riquezas materiais oferecidas nos rituais védicos, ocasião de muitas trocas pertinentes
para os sujeitos envolvidos, constituindo-se em fontes de história incrustada
presente, por exemplo, no Ṛgveda Saṃhitā, no Mahābhārata e no Śatapatha Brāhmaṇa.
Os kathās foram primeiros esboços de louvores a heróis que,
subsequentemente, daria origem às narrativas mais extensas da tradição
literária itihāsa-purāṇa.
Os Itihāsas são
extensos textos narrativos em versos, desenvolvidos a partir de pequenas
narrativas originais esparsas sobre feitos heróicos de manifestaçőes humanas
e/ou animais do deus Viṣṇu, conhecidos como avatāras, que também
desempenham papel de protagonismo em outra categoria textual hindu plural, os Purāṇas. Nas
palavras de Sibesh Bhattacharya, em sua obra Understanding Itihāsa (2010), o
Itihāsa “é seletivo em seu âmbito; ele não é um acúmulo indiscriminado,
imparcial e desinteressado de todos os possíveis fatos pertencentes ao passado.
O passado que merece ser incluído no espectro do Itihāsa é aquele que é capaz
de transmitir instruções. É um repositório de conhecimento (vidyā)”
(Bhattacharya, 2010, p. 45, itálicos do autor). Os Itihāsas e os Purāṇas acabam englobando
uma série de temas culturais, como os modos de vida familiar e ritualístico da
sociedade hindu, a geografia do subcontinente indiano, a gastronomia indiana,
narrativas mitológicas das tradições hindus, o poder político e sua consequente
administração pública, intrigas palacianas, modos de vida renunciantes, a arte
militar, assim como concepções hindus de tempo.
Com o tempo, a tradição itihāsa-purāṇa se tornou meio de legitimação de
status, com objetivo de preservar cuidadosamente as genealogias de linhagens e dinastias (vaṃśāvalīs). Não se constitui numa tradição
paralela aos kathās e ākhyānas, visto que também incorpora muitas formas de história
incrustada: “Evidentemente,
havia uma necessidade de uma tradição histórica reconhecível neste momento. Na
transição da linhagem para o estado, que estava ocorrendo em muitas partes do
norte da Índia, a monarquia emergiu como a forma política viável.”
(Thapar, 1992, p. 152).
As duas narrativas tradicionalmente classificadas como itihāsas, i.e. o Mahābhārata e o Rāmāyaṇa, giram em torno de duas linhagens,
uma da Índia setentrional, a dos Alia, no oeste do Ganges, no primeiro caso; e
outra dos Ikṣvāku, do Ganges central até o sul indiano, no segundo caso. Os
itihāsas refletem
os germes de uma tradição histórica mais consciente e menos incrustada na
medida em que é a expressão de um momento posterior se apropriando de um
momento anterior, tomando a forma de
interpolações intercaladas entre os fragmentos da tradição oral dos
poetas (Thapar, 1992, pp. 147-148).
O conteúdo dos Purāṇas permaneceu como tradição oral
por séculos até ser compilado na forma de saṃhitās
em meados do primeiro milênio E.C., reorganizando o material anterior das
seções genealógicas em um novo formato. Os Purāṇas refletem, inclusive, o
entrelaçamento sócio-cultural entre uma tradição falante do sânscrito e outras
tradições locais, inevitável em situações nas quais falantes do sânscrito
recebiam concessões de terra e estabeleciam-se em áreas onde a exposição à
cultura sânscrita era relativamente escassa.
Para Thapar, a tradição literária itihāsa-purāṇa é o reflexo de três fases no
desdobramento da história antiga da Índia, ou seja, a fase das sociedades de
linhagem, na qual a consciência histórica estava incrustada e registrava a
percepção do ordenamento destas linhagens; a fase de evolução dos estados no
norte da Índia, com ênfase no poder dinástico e na supremacia do estado como um
sistema que se sobrepôs ao ordenamento das estratificações sócio-ocupacionais;
e a terceira fase, no período pós-Gupta (após séc. VI E.C.), com uma mudança na
estrutura do estado, acompanhada pela necessidade de legitimação do status das
famílias governantes.
Um dos tipos de fontes que tem despertado atenção de
historiadores para a história das tradições hindus são as cerca de noventa mil
inscrições em pedras ou metais descobertas até hoje em diferentes partes da
Índia, majoritariamente nas áreas de abrangência das línguas tâmil, kannada e
telugu, a maioria das quais ainda não publicadas. Em suas datações mais
remotas, muito poucas são anteriores ao reinado de Aśoka Maurya (séc. III
A.E.C.), e a maioria se dedica à comemoração de eventos particulares ou à
dedicação de construções ou imagens: “O conhecimento exato das datas dos
eventos na história hindu primitiva, na medida em que ele foi obtido, baseia-se
principalmente no testemunho de inscrições.” (Smith, 1923, pp.
xvi-xvii). Dentre os exemplos mais conhecidos estão os éditos e pilares de
Aśoka Maurya, a inscrição em Junagadh de Rudradāman (c. 150 E.C.) e a inscrição no
pilar em Allahabad de Samudragupta (c. 350 E.C.). Estas fontes registram
aspectos curiosos como construções de obras públicas, certo senso de
cronologia, apresentação de linhagens régias, considerações sobre realidades
sociais, assuntos militares, a presença em cortes monárquicas de povos
estrangeiros ao subcontinente indiano, etc.
Arvind Sharma chama a atenção para um grupo de textos
pertencente à literatura clássica sânscrita que mais se identificam com o
projeto de narrativa histórica, quais sejam, i) o “Navasāhasāṅkacarita” de Parimala Padmagupta (c.
1005), ii) o “Vikramaṅkadevacarita”
de Bilhaṇa (séc. XI E.C.), iii) o “Pṛthvīrājavijaya” de Jayānaka (c. 1192), iv) o “Dvyāśrayamahākāvya” de Hemacandra Sūri (séc. XII E.C.), v) o “Rāmacarita” de Sandhyākara (séc. XII E.C.), vi) o “Sukrṭasaṃkīrtana” de Arisiṃha (c. 1229), vii) o “Kīrtikaumudī” de
Someśvaradeva (séc. XIII E.C.), viii) o “Vasantavilāsa” de Bālacandra Sūri (c.
1300 E.C.), ix) o “Madhurāvijaya” de Gaṅgādevī (c.
1371), x) o “Saluvābhyudhaya”
de Rājanātha Diṇḍima (c. 1480), xi) o “Hammīramahākāvya” de Nayacandra Sūri (séc. XV E.C.), xii) e o mais famoso
deles, o “Rājataraṅgiṇī” de Kalhaṇa (1149-1150 E.C.), obra escrita em 7826 versos e dividida
em oito livros, um dos textos em sânscrito que mais se aproximam da noção de
historiografia segundo o projeto acadêmico ocidental. Apesar de algumas
imprecisões cronológicas, para R. C. Majundar,
“O autor não apenas se esforçou muito para coletar seu material de crônicas existentes e outras fontes, mas, no início de seu trabalho, ele estabeleceu alguns princípios gerais para escrever a história, que são notáveis por anteceder muito o seu tempo. Na verdade, pode-se considerar que eles antecipam, em grande medida, o método crítico de pesquisa histórica, que não foi totalmente desenvolvido até o século XIX E.C.” (Majundar, 1952, pp. 49-50)
“O autor não apenas se esforçou muito para coletar seu material de crônicas existentes e outras fontes, mas, no início de seu trabalho, ele estabeleceu alguns princípios gerais para escrever a história, que são notáveis por anteceder muito o seu tempo. Na verdade, pode-se considerar que eles antecipam, em grande medida, o método crítico de pesquisa histórica, que não foi totalmente desenvolvido até o século XIX E.C.” (Majundar, 1952, pp. 49-50)
Duas questões saltam aos olhos: do ponto de vista da
história social, é possível perceber, na grande maioria das fontes
supracitadas, uma refração à abordagem das camadas sociais hindus mais
inferiores, seja do sistema de estratificações sócio-ocupacionais (varṇas), i. e. os vaiśyas (comerciantes) e
o śūdras (servos), seja das comunidades rituais (jātis), p. ex. os śvapacas e os cāṇḍālas. À
primeira impressão, estas camadas só aparecem nos documentos em função das
camadas superiores da sociedade védica, ou seja, os varṇas dos brāhmaṇas (sacerdotes eruditos) e dos kṣatriyas (guerreiros ou governantes).
A outra questão, muito cara ao que se entende como história
da cultura ocidental, é a impossibilidade de visualizar, em algumas das fontes
apresentadas, uma separação clara e nítida entre as dimensões religiosas e
seculares das realidades hindus tratadas pelos respectivos documentos, tal como
aconteceu com a perspectiva analítica da historiografia ocidental,
principalmente nos últimos séculos.
A partir da proposta de um diálogo entre paradigmas teóricos
e metodológicos ocidentais e indianos na área da História como projeto de
ciência e disciplina acadêmica, este breve inventário de exemplos literários da
cultura hindu que, de alguma maneira, se aproximam do que se denomina de
historiografia, parece apontar para uma compreensão do “homo historicus” como
sujeito e como objeto da História enquanto noções de temporalidade, de métodos investigativos e de usos da memória
para além de paradigmas culturais do Ocidente. Nas palavras de Bhattacharya,
“Uma função
importante que a história desempenha é que ela mantém viva a consciência da
dívida de alguém com o passado, dá-lhe um senso de pertencer ao que pode ser
chamado de tradição e herança, e gera um senso de continuidade. [...] A
orientação cultural e intelectual da Índia antiga traz diversas marcas de
sensibilidade em relação ao passado”. (Bhattacharya, 2010, p. 17)
Referências
Matheus Landau de Carvalho é Bacharel e Licenciado em História com Habilitação em
Patrimônio Histórico pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2009. Especialista
(2010), Mestre (2013) e Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da
Religião (PPCIR), pela mesma Universidade. É membro do NERFI (Núcleo de Estudos de Religiões e
Filosofias da Índia) e da ABHR (Associação Brasileira de História das Religiões).
BHATTACHARYA,
Sibesh. Understanding Itihāsa. Shimla: Indian Institute of
Advanced Study, 2010.
CARVALHO, M. L. Dimensões religiosas e seculares do
ascetismo renunciante hindu (parivrajyā) nas Leis de Manu (Mānava-Dharmaśāstra).
Revista Plura, vol. 8, n. 1,
jan-jun 2017, pp. 212-239.
MAJUNDAR, R. C. (ed.). The Vedic
Age. London:
George Allen & Unwin Ltd., 1952.
SHARMA, Arvind. Hinduism & Its Sense of History.
New Delhi: Oxford University Press, 2003.
SMITH, Vincent. A. The Oxford History of India From the Earliest
Times to the End of 1911. Oxford: Clarendon Press, 1923.
THAPAR, Romila. Interpreting Early India. New Delhi:
Oxford University Press, 1992.
O assunto é de muito interesse. Eu continuo pensando em outras fontes diferentes, como os jainas (por exemplo, o Acaranga, que conta episódios da vida de Jina) e budistas (por exemplo, o Tripitaka, que fornece informações sobre a vida de Buda e seu tempo), o recorde de certos eventos na dinastia Maurya (por exemplo, no Arthasastra de Kautilya, o gopa, coletou informações das aldeias sob sua responsabilidade), etc. Eu quero perguntar-lhe sobre a importância dos textos de arte, como Natyasastra, como fontes históricas e também de moedas.
ResponderExcluirPrezada Lia De La Vega,
ExcluirQue alegria receber a sua mensagem. Desde já agradeço pelo comentário e pelo interesse no assunto.
Sim, claro, de fato a cultura indiana como um todo oferece diversas categorias textuais que, com certeza, poderiam constar em uma espécie de inventário de manifestações literárias que, de alguma maneira, se aproximam do que se denomina de historiografia nas tradições historiográficas ocidentais, como você bem citou, alguns registros advindos da dinastia Maurya (substancialmente os éditos em pedras, pilares e cavernas de Aśoka), o Arthaśāstra de Kauṭilya, assim como as fontes budistas e jainistas citadas. Gostaria de pontuar, mediante a sua pergunta, algumas questões:
1.De fato, pelos limites impostos sobre a extensão das Comunicações aqui apresentadas, eu gostaria de ter abordado também outras categorias textuais para além daquelas “classificadas” como hindus (por todos os problemas implicados neste processo, muito em virtude de como as culturas hindus foram taxonomizadas por paradigmas culturais de fora do subcontinente indiano, neste caso tanto greco-romanos quanto judaico-cristãos)... ao decidir sobre o objeto de abordagem, preferi apresentar aquelas categorias textuais que, em geral, não são privilegiadas quando o tema é exatamente este dos documentos produzidos por culturas originárias do subcontinente indiano com alguma natureza historiográfica. Acredito, prezada Lia De La Vega, que muito desta preterição se deve a uma certa tendência, em nosso meio universitário brasileiro, de se privilegiar abordagens baseadas a) na linguística (comparada e/ou estruturalista), b) na filosofia (especulativa), e c) na sociologia quando se trata de culturas do subcontinente indiano, sem que preocupações metodológicas mais afins da(s) metodologia(s) historiográfica(s) (advindas de, digamos, tradições acadêmicas ocidentais sob um prisma mais amplo), ao meu ver, recebam algum tipo de atenção por parte de nosso meio acadêmico...
2. Escolhi as categorias de vaṃśa, vaṃśāvalī, carita, dāna-stuti, ākhyāna, kathā, e itihāsa-purāṇa não somente por serem temas bastante ausentes, inclusive nos âmbitos acadêmicos brasileiros (exceto, talvez, pela tradição itihāsa-purāṇa, trabalhada majoritariamente pelo viés das áreas acadêmicas supracitadas), mas também por oferecerem um espectro de abertura exatamente para esta discussão em torno da temática metodológica sugerida por minha Comunicação... minha intenção em apresentá-los, ainda que brevemente, foi sugerir algo inusitado (em nosso meio acadêmico) para a compreensão de certas características culturais hindus que podem conjugar com aspectos historiográficos semelhantes de padrões historiográficos ocidentais...
3.Acerca dos textos de arte, como o Naṭyaśāstra, acredito, prezada Lia, que as duas questões que apontei no fim de minha Comunicação ainda permanecem significativas, ou seja, a pouca ênfase nas estratificações sócio-ocupacionais (varṇas) mais baixas, no caso de culturas hindus, claro (e, consequentemente, daquelas inumeráveis comunidades rituais hindus, as jātis, que também são apropriadas por estudos ocidentais sob o nome de “casta”, tal como os próprios “varṇas”); assim como da não-dissociação entre dimensões secular e religiosa, tal como culturas ocidentais fizeram, o que nos exige toda uma re-educação do olhar para com essas culturas, tais como as do subcontinente indiano...
ExcluirParticularmente, Lia, acredito que a tarefa continua bem desafiadora no sentido de conjugar a percepção de processos lógico-racionais e também linguístico-semânticos, seja nos conteúdos quantitativos trazidos por essas fontes, seja no arranjo estrutural que estes documentos apresentam no trato com estes mesmos conteúdos, inclusive, claro, os textos de arte/estética indiana... são importantes para uma abordagem historiográfica na medida em que refletem valores e sentidos constituintes dos fluxos semânticos compartilhados por determinado complexo cultural, são janelas de percepção espaço-temporal dotadas de uma sutileza num nível tal que outras categorias documentais não possuem... digo no sentido de revelarem, por exemplo, “cotidianidades” que poderiam passar despercebidas num tratado mais prescritivo-descritivo, ou em manuais de reflexão especulativa...
4.Outra nuança metodológica que sempre me vem à mente, prezada Lia, é aquela sutileza, muito cara à metodologia da História como projeto de ciência e disciplina acadêmica, do jogo implícito nas abordagens verificativas entre “prova” e “indício”... se num estudo, digamos, “intra-hemisférico” (ocidental), já sofremos bastante com esse jogo, penso que, ao nos posicionarmos mediante outros paradigmas para além de Atenas e Jerusalém, o desafio (qualitativo) só aumenta...
5.Com relação às moedas, sim, muito interessantes, não é verdade???? Desde as famosas escavações em Mohenjo-Dāro e Harappā, passando por D. D. Kosambi, até chegar nos dias de hoje, acredito que estamos circunscritos, em nosso ângulo de percepção de contexto histórico, aos cálculos políticos, com algum reflexo cultural, daqueles que estabeleceram suas cunhagens... neste ponto, penso que a numismática do subcontinente indiano também é perpassada pelas mesmas diretrizes que percebemos em outras culturas, algo como aquela relação iconografia x iconologia irrevogável da hermenêutica específica destas fontes históricas...
Prezada Lia De La Vega, espero ter correspondido às expectativas das suas perguntas...
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ResponderExcluirRicardo Pereira Pinto - UFF - 08/08/2019
ResponderExcluirOlá Matheus Landau ! Segundo as informações do texto, o termo Hinduismo ou Hindu não se originou da cultura védica e muito menos do sânscrito, mas, foi cunhado pelos persas para estabelecer uma distinção entre os muçulmanos e aqueles que viviam do outro lado do rio sindhu. Então, isso pode ser entendido que a tradição cultural do subcontinente indiano não reconhece a si mesma sob tal denominação ?
Prezado Ricardo Pereira Pinto,
ExcluirQue alegria receber a sua mensagem. Desde já agradeço pelo comentário e pelo interesse no assunto. Sua pergunta, prezado Ricardo, é muito boa... vamos por partes:
1. As discussões em torno dos usos do termo “Hinduísmo” são aquelas quase infinitas... como registrei em minha Comunicação, o termo provém sim do sânscrito e era, inicialmente, usado para se referir aos acidentes geográficos “mar”, “oceano”... e não somente isso... aquela que, do ponto de vista da História, é considerada a primeira civilização significativa a surgir no subcontinente indiano, denominada nos últimos dois séculos por meios acadêmicos de “Civilização do Vale do Indo” ou, “Civilização do Indo-Sarasvatī”, ou ainda “Civilização de Harappā”, era compreendida, pelo menos a partir dos registros hindus cujas composições, ainda que restritas ao suporte (de transmissão) oral, são datadas da época de existência desta mesma civilização supracitada (c. 3.300 A.E.C. - c. 1.900 A.E.C), como sendo a “Terra dos Sete Rios” (“Sapta Sindhu”), expressão que indica uma origem sânscrita sim, mas não com a dimensão semântica adquirida segundo a apropriação que dela fizeram para denominar aquelas tradições do subcontinente indiano que não eram budistas, jainistas, sikhs ou Cārvāka, ou seja, para inserir sob uma mesma rubrica o que hoje se compreende como sendo, em linhas gerais, aquelas ortodoxias e ortopraxias circunscritas às tradições conhecidas como Smārta, Vaiṣṇava, Śivaíta e Śākta...
2. Historicamente (e confessionalmente) falando, de fato, antes do estabelecimento definitivo deste termo com esta dimensão semântica sobre as realidades culturais indianas aqui implicadas, não houve uma compreensão de si mesmo, por parte dos praticantes destas tradições que mencionei acima, como sendo um “hindu”... não é o que encontramos nas literaturas sagradas em sânscrito que estudamos sob a designação de “hindus”... não é assim que os seguidores desta cultura védica, para usar um termo de aplicabilidade mais geral e menos problemática, viam a si mesmos...
Excluir3. A questão do reconhecimento de si mesma sob tal denominação é outro ponto complicado, pois, principalmente a partir do século XIX, alguns movimentos de origem indiana tentaram reconciliar esta pluralidade cultural de práticas védicas com o termo “Hinduísmo”, como, por exemplo, o movimento de Vināyak Dāmodar Sāvarkar e a sua concepção de “Hindutva” (“Hinduidade”), de forte tom nacionalista hindu... o próprio Sāvarkar se perde em suas tentativas de definir com precisão esta “Hinduidade” que tanto anunciava...
Excluir4. De modo que, ao meu ver como historiador, prezado Ricardo, este termo “Hinduísmo” adquiriu aquela condição que termos como “Medieval”, “Renascentista” e outros adquiriram, bem complicados para uma definição precisa e proporcional às realidades que foram referidas, um termo que ficou impregnado e com o qual teremos que lidar por um bom tempo... (as próprias expressões “Índia Antiga” e “Índia Medieval” são problemáticas demais se inseridas num projeto de definição categórica acadêmica, apesar de usadas recorrentemente em publicações acerca da história do subcontinente indiano... as próprias percepções de temporalidade das tradições hindus são diferentes da maneira que predominantemente temos para nossas pesquisas em História...)
Excluir5. Nos últimos séculos, porém, não é incomum encontrarmos na Índia praticantes de uma daquelas quatro ortodoxias e ortopraxias circunscritas às tradições védicas (Smārta, Vaiṣṇava, Śivaíta e Śākta) definindo-se como um ”hindu” mediante um quadro confessional indiano mais amplo, mesmo definindo-se a si mesmo como um smārta, um vaiṣṇava, um śivaíta e um śākta quando a questão identitária estiver circunscrita a estas quatro referências...
ExcluirEstou muito grato professor Matheus e satisfeito com sua resposta. Com certeza em um tema que tem sua complexidade. Namaste !
ResponderExcluirPrezado Ricardo Pereira Pinto, eu é que agradeço por este diálogo, bacana demais... com certeza, continuaremos... parabéns para todos nós neste 3º Simpósio Eletrônico de História Oriental...!!!! Namastê !
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