Douglas Pastrello


A NAÇÃO QUE NUNCA É – A CULTURA POLÍTICA DO CORPO E A HONRA NIPÔNICA
Douglas Pastrello

O fim da Segunda Guerra Mundial foi um grande marco na História, não só por que aliviou a tensão que regimes autoritários haviam causado na última década, assim como estabeleceu uma nova ordem mundial bipolar baseada em distintos princípios econômicos e políticos como também afetou em singularidade cada nação que participou ou foi palco do conflito.
O Japão, um país que há um século antes da guerra estava recluso vivendo ainda em uma espécie de era feudal moderna se abriu para o mundo ao fim do séc. XIX e buscou seu espaço na grande geopolítica global.
Todavia com o fim do conflito em 1945, desencadeado pelo uso dos artefatos atômicos, ocorrem grandes mudanças na sociedade japonesa, em sua cultura e suas próprias lógicas internas, principalmente em decorrência da mudança no paradigma social e a ocupação americana (1945-1952) que instaura a nova constituição moderna do Japão – em vigor até o presente.
Todos esses eventos não só impactaram a mudança no presente da sociedade nipônica, como também foram responsáveis por diversas sequelas na memória dos sobreviventes e daqueles que embora não tenham presenciado o conflito, estão em constante troca de memórias, seja com indivíduos ou com os lugares de memória que carregam a carga simbólica desta memória.
Inicialmente é possível pensar no conceito de uma “cultura do corpo” presente na sociedade nipônica, o historiador Yoshikuni Igarashi(2011) atribui grande significado ao corpo, para ele o corpo é portador de uma memória viva, vasta, que é representada por cada cicatriz, curva que possuí.
Esta cultura do corpo parece adquirir o status de uma cultura política a medida que permeia a sociedade nipônica ao longo dos anos e como cultura política, entendemos o conceito que Serge Berstein(1998) pontua como algo que permeia uma sociedade sem necessariamente permutar com ela, sendo uma ideia plural que é transmitida nos diversos círculos sociais, frutos de anseios de seu próprio tempo.
A honra do Yamato-Damashii – os corpos acorrentados
A sociedade japonesa desde a reforma Meiji (1868-1912) foi moldada com um objetivo em mente: transformar o Japão em uma potência global e com este objetivo na mesa foram tomadas diversas medidas que visassem não só o maior controle da sociedade de tal forma que da população em conjunto.
É necessário ressaltar que a sociedade japonesa neste período próximo da Segunda Guerra é um regime autoritário e militar, centrado na figura do Imperador, uma divindade viva que tem em suas vontades a mais pura das verdades.
Desta forma há primeiro um apelo muito grande ao ufanismo nipônico, como Célia Sakurai (2014) aponta havia uma necessidade de criar uma narrativa firmando que o todo japonês fosse uma grande família, e tudo fosse justificado como o “o bem de todos”:
“Toda mudança passou a ser justificada como sendo para o “bem de todos”, mesmo que à custo de sacrifícios. O argumento da “necessidade de harmonia, emprestado do confucionismo, foi usado para dar corpo às tarefas necessárias. A imagem da “família ideal” ilustrou a ideia do individuo como parte de um todo que começa com a família nuclear, passando pela extensa, a comunidade, a província até chegar ao Imperador, deste à “grande família que é o universo” e finalmente a harmonia em si”. (SAKURAI, 2014. P150)
A narrativa ainda justificava a proximidade entre os japoneses com o argumento de que todos seriam descendentes da deusa sol Amaterasu, inclusive o próprio Imperador, buscando uma ideia entre o “Eu e o outro”, o todo japonês deveria ser visto como unido, único, exclusivo e o que não fosse o japonês, por consequência o outro, não teria a mesma “descendência sagrada”, a mesma exclusividade, assim como atestaria a superioridade japonesa frente as outras nações.
Em Topofília (1980) do geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan, há um debate interessante relacionado a “teoria do centro”, em que uma civilização tende a pensar no mundo e suas características com base em seu próprio centro cultural, desta forma tudo que gradativamente se afasta do centro tende a ser visto com maior repulsa, como bizarro ou até como incivilizado e bárbaro, nas palavras do geógrafo:
“A ilusão de superioridade e centralidade provavelmente é necessária para a manutenção da cultura. [...] As nações modernas também mantêm uma visão etnocêntrica do mundo, pesar de saberem muito bem que não são as únicas a fazer essa reivindicação”. (TUAN, 1980. P. 36)
Nestas condições de pensamento que o Estado japonês caminha, cria-se a cultura política da tradição e da honra, aproveitando do código do bushido samurai, estes que outrora eram os grandes senhores, agora eram perseguidos, todavia sua tradição se tornaria útil para solidificação do Yamatoo-Damashii, o “espirito japonês”, aquilo que diferenciaria o japonês do Outro.
Certamente que é estritamente lógico afirmar que a cultura da honra não é uma invenção do Estado japonês do início do séc. XX, porém seria correto afirmar que sua fixação no imaginário popular como uma cultura política, sim.
A questão ganha um novo nível a partir da Segunda Guerra Mundial, a tensão envolvendo o conflito alavanca em grande parte o discurso ufanista que em certa medida já era presente.
Os japoneses se acreditavam iluminados (SAKURAI, 2014. P,186), consideravam estar moralmente e superiores ao resto do mundo, isso fica visível quando entramos em contato com as narrativas, discursos e memórias do conflito, de um lado temos o oficial militar promovido pelo Estado como algo comum e corriqueiro, ao passo que também há o lado civil e a relação entre os civis com esta cultura política.
Durante o conflito o principal inimigo do Japão passa a ser os Estados Unidos, após o ataque em Pearl Harbor(1942) o governo americano consegue a comoção de sua nação e respaldo popular para adentrar na guerra, uma das maiores mobilizações populares da história recente do país, em seu ápice houve um efetivo total de cerca de 12 milhões de soldados, representando um salto dos quase dois milhões de 1942.
Com todo esse efetivo os Estados Unidos auxiliam em diversas frentes de guerra, porém o teatro de operações do pacífico foi onde ele mais se destacou, e encarando o Japão frente a frente, deixando evidente a grande diferença cultural entre o ocidente e o Japão.
Deste momento, destaca-se os escritos de Ruth Benedict, uma antropóloga que a pedido do governo americano deveria estudar o povo japonês, seus prisioneiros de guerra como forma de auxiliar na construção de medidas para lidar com a sociedade japonesa no pós-guerra que viria.
Do ponto de vista japonês a guerra era necessária para trazer ordem à anarquia do mundo, que só poderia prosperar sob o domínio japonês, algo que a antropóloga reforça constantemente ao tratar dos japoneses na guerra,
O espírito, diziam os japoneses, era tudo, era eterno;as coisas materiais eram necessárias, bem entendido, mas secundárias e perdiam-se pelo caminho[...] “contrapor o nosso treinamento ao número deles, nossa carne, ao seu aço”.(BENEDICT, 1997. P.28)
O governo nipônico usava de todos os meios possíveis para promover a cultura da honra, utilizando principalmente de transmissões no rádio chegava inclusive a afirmar quando os bombardeios começaram atingir as cidades japoneses que “o inimigo estava exatamente onde planejavam”,  à escassez de alimentos dizia-se que quanto maior era a escassez mais devia-se aumentar a força física através de outros meios. “Não devemos pensar que tenhamos sido passivamente atacados, mas sim que ativamente atraímos o inimigo para nós” (BENEDICT, 1997. P.31)
A diferença é bem nítida ainda quando os próprios japoneses comparam sua cultura a dos EUA, valores que os próprios norte-americanos veem com um ar positivo são motivo de estranhamento e chacota na cultura da honra nipônica, como no trecho a seguir que foi veiculado no rádio:
“A razão oficial da condecoração não foi por ter o comandante John S. McCain sido capaz de pôr sido capaz de pôr os japoneses em fuga, embora não compreendamos por que, já que a comunicação de Nimitz assim revelou... Pois bem, a razão da condecoração do almirante McCain foi por ele ter conseguido salvar dois navios de guerra americanos.[...]o que desejamos que notem é que o salvamento de dois navios avariados é motivo para condecoração nos Estados Unidos” (BENEDICT, 1997. P.37)
Dentro das fronteiras do Sol Nascente, Yoshikuni Igarashi descreve em “Corpos da Memória”(2011) como os corpos japoneses eram vistos como uma extensão  do Estado japonês, todo o efetivo japonês deveria ser focado na guerra e na vitória, o historiador cita, por exemplo, a Kokumin Tairyoku Hö(Lei nacional do Vigor físico) e a  Kokumin Yüsei Hö(Lei nacional da Eugenia), ambas destinadas ao “aprimoramento do corpo japonês”.
Sob a Lei nacional do Vigor físico, todos os jovens abaixo dos 20 anos deveriam se submeter a exames físico para receber uma documentação com os resultados, histórico médico, dentição e a partir de 1942 passou a incluir um exame de capacidade motora voltado para fins militares.
Em contrapartida a Lei de nacional eugenia autorizava o governo a ordenar operações em pessoas julgadas inaptas ao corpo nacional, processos que podiam ser estendidos até parentes de 4º grau; para além das operações era comum ainda a exclusão social de leprosos e doentes mentais.
Leprosos recebiam um tratamento “especial” por conta do Estado, deviam se recolher aos hospitais quarentena e aceitar sua exclusão como um ato de bondade por parte da família imperial e do Estado, uma vez que eles muitas vezes patrocinavam os gastos com o “tratamento”, já os doentes mentais passavam por condições muitíssimo piores,
“No hospital Matsuzawa de Tóquio, 41% dos pacientes morreram em 1945, enquanto que a taxa de morte da filial foi cerca de 53%. De acordo com os registros de ala de saúde mental do Hospital da Universidade Imperial de Quioto, as mortes de pacientes constituíram 34% dos casos de “alta”. Muitos paciências perdiam peso de forma gradual, às vezes chegando a um quilo por semana, tinham diarreia crônica, e, finalmente, morriam[...]a diarreia parecia ser o único e ultimo meio pelo qual os pacientes comunicavam seu sofrimento nas péssimas condições do hospital”. (IGARASHI, 2011. P.130)
O controle do corpo e a cultura de auto sacrifício(ou da honra) na esfera civil fazia uso, então, de toda a maquina do Estado, desde propagandas, criação de leis e uso coercitivo da força, entretanto na espera militar a questão era intensificada.
Igarashi apresenta o relato do fotografo Kikujiro Fukishima, que convencido pelo discurso ufanista da guerra decidiu se alistar no exército e recusando uma recomendação médica de não alistamento devido uma icterícia aguda, ignorando todo o fugaz instinto aprendeu a controlar seu corpo e recusou a “rendição” para servir o país.
A crença ingênua de Fukushima foi estilhaçada no momento em que percebeu a crueldade dos treinamentos, seus corpos não eram seus, pertenciam aos superiores, à nação, faziam parte do Yamato-Damashii e desta forma falhar com seu dever patriótico beirava a traição e em uma nação tão rígida e restrita como essa a traição deve ser punida com a morte.
O fotografo descreve como homens que não eram capazes de recitar a “Declamação Imperial para Soldados e Marinheiros” eram brutalmente espancados até virarem um mingau indistinguível de sangue. (IGARASHI, 2011. P.131)
O sofrimento de Fukushima fica visível em seu relato,
“Meu estomago, enfraquecido até o limite, rejeitava as comidas dos militares que continham feijões de soja[...] o que eu comia permanecia na forma original – e sujava minhas calças quando estava em sessões de treinamento[...] Contudo, os poucos solados que foram devagar nas suas ações e memorizações continuaram sendo punidos(como tinha acontecido desde o começo do recrutamento). Três deles escaparam uma noite: um deles foi encontrado como um cadáver mutilado atropelado por um trem, enquanto outros dois foram içados do poço do complexo militar, inchados como bolas de borracha. Os oficiais e líderes do pelotão que correram até a cena, ficaram chutando os corpos até que as barrigas estouraram e os órgãos internos saíram, enquanto ficavam gritando: “Seus traidores””. (KIKUJIRO apud IGARASHI, 2011. P.132)
É interessante notar que embora o sofrimento fosse grande, terrível, havia uma grande resiliência adquirida através da doutrinação ideológica sobre os corpos, a cultura da honra envolta no mais sublime espírito jazia até o mais vigoroso corpo.
Considerações finais
Compreender a história da Segunda Guerra Mundial vai muito além de compreender as batalhas, os grandes fronts da guerra ou até mesmo as grandes operações, é preciso compreender também as sociedades envolvidas no conflito, indo para além do militar, se torna necessário uma perspectiva mais humana e menos maniqueísta que visa compreender o homem comum frente todo o discurso de guerra.
Não se trata de justificar e sim compreender, os impactos de um evento deste porte vão para aquém dos soldados ou os fronts de batalha, torna-se assim denotar o papel que o civil compreender no meio do conflito também é relevante e que diferente do que o discurso vitorioso traça: o lado vencido também tem uma história.
Referências
Douglas Pastrello especialista em filosofia e mestrando em história política pela UEM, com ênfase na história recente do Japão e análise de fontes cinematográficas.
ANIMAGE. Two grave voices in animation. Tokyo. v. II. nº11. 1987.
BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada: Padrões da Cultura Japonesa. São Paulo: Perspectiva, 1997.
BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean François (org.) Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998. P.349-363
IGARASHI, Yoshikuni. Corpos da memória: Narrativas do pós-guerra na cultura japonesa (1945-1970) Tradução deMarco Souza e Marcela Canizo. São Paulo: Annablume, 2011.
MORITA, Hiroaki. Nation’s most decorated military unit, the 100th/442ND regimental combat team. U.S Army College: Pennsylvania. 1992.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28
SAKURAI, Célia. Os japoneses. São Paulo: Contexto, 2011.
TUAN,Yi-fu. Topofilia: um estudo da percepção, Atitudes e Valores do Meio Ambiente. São Paulo: Difel. 1974.
WORLD WAR II MUSEUM. Research Starters: US Military by the Numbers. 2019. Disponível em:
 <https://www.nationalww2museum.org/>. Acesso em: 10 jan. 2019.

3 comentários:

  1. Boa noite, Douglas Pastrello, meus parabéns pela pesquisa muito bem fundamentada. Minha dúvida é sobre como o Japão combateu, ou se combateu, toda essa concepção de superioridade construída por muitos anos e até que ponto o Yamato-Damashii faz parte da identidade nipônica nos dias de hoje?
    Beatriz Caetano

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    1. Boa noite, Beatriz, agradeço pelo comentário positivo e sobre sua pergunta, na verdade como afirma o próprio teórico japonês, Shuichi Kato, a cultura japonesa é muito focada no presente e marcada pelo ditado "deixa a água levar", quando após o fim da 2ºGM com a ocupação americana foi necessário reinventar a sociedade e cultura japonesa assim o foi, a sociedade japonesa não teve tantos problemas em se adaptar as mudanças necessárias. Uma cultura muito focada no presente e que se adapta com facilidade, vide hoje por exemplo que o Japão talvez seja a coisa mais próxima do consumismo norte-americano, dai inclusive o meu título da pesquisa "A nação que nunca é". Claro que notamos sequelas na cultura japonesa, ao considerarmos o senso de dever que o povo nipônico ainda carrega em si, podemos afirmar que é uma das caracteristicas que sobreviveram ao tempo.
      Att. Douglas Tacone Pastrello

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    2. Mais uma vez te parabenizo pelo texto e agradeço a resposta esclarecedora.
      Beatriz Caetano Pinheiro Gomes

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