Daniele Prozczinski


A CONSOLIDAÇÃO DO REGIME E A POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO – O GRANDE SALTO EM FRENTE (1949-1963)
Daniele Prozczinski       

No seguimento da vitória do comunismo na China, vários desafios apresentavam-se ao governo de Mao Zedong. Segundo J. A. Roberts, no período entre 1949 e 1952, havia quatro questões a serem revolvidas. Em primeiro lugar, era preciso estabelecer as diretivas que iriam guiar o novo regime. Em segundo, a inflação precisava ser controlada e a economia restabelecida. Em terceiro, todas as regiões consideradas chinesas precisavam voltar para a autoridade do PCCh, como o Tibete, incorporado em 1950, e Xinjiang, concretizando a unidade territorial. A questão da desintegração do território chinês era uma preocupação antiga. Com o Guomindang partindo para Taiwan, não havia uma resistência organizada ao poder do PCCh no continente. Não obstante e dada a imensidão territorial da RPC, havia o perigo de insurgência contra o novo regime, sendo que, visando acabar com essa possibilidade, o país foi dividido em seis áreas, para que fosse exercido um controle mais eficaz.
Em quarto, era preciso redefinir o lugar da China no cenário internacional. No ambiente pós Segunda Grande Guerra, ficou evidente para Mao que teria que escolher um lado, aliando-se à União Soviética, através da assinatura de um Tratado de Aliança e Assistência Mútua em 1950(ROBERTS, 2012, p. 359–60). A sua posição internacional estava enfraquecida, até pelo governo do PCCh não ser reconhecido internacionalmente e o assento no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) ter sido dado à Taiwan. Poucas semanas após a fundação da RPC, Mao foi para a URSS, onde teve uma recepção fria, segundo Dikötter. De acordo com o mesmo autor, Josef Stalin considerava Mao um marxista das cavernas(DIKÖTTER, 2017, p. 30) e conclui que, “por mais de trinta anos, Mao teve de bancar o pedinte para o líder do comunismo no mundo.”(DIKÖTTER, 2017, p. 29) O historiador Harry Gelber, por outro lado, apresenta uma versão bastante diferente. Para o autor, Mao foi recebido muito bem, Stalin até lhe pediu desculpas por alguns erros cometidos pela URSS e pelo Comintern ao lidar com a China e reforçou positivamente a parceria(GELBER, 2008, p. 393–394). Já os autores Chang e Halliday afirmam que o encontro aconteceu logo no primeiro dia e que foram discutidos os termos da parceria entre Mao e Stalin(CHANG; HALLIDAY, 2006, p. 349–350). Independentemente das discrepâncias historiográficas, a aliança foi estabelecida, e, para Roberts, os pontos mais importantes “[...] eram a promessa de apoio mútuo em caso de ataque pelo Japão e o adiantamento de 300 milhões de dólares em créditos à China.”(ROBERTS, 2012, p. 360)    
No que concerne ao primeiro ponto, definir a estrutura e forma de governança, era vital estabelecer uma gestão administrativa que consolidasse o novo regime. Aliando a extensão territorial às primitivas comunicações existentes, a criação de organizações locais foi o primeiro passo, ligando as cidades às aldeias. Com o intuito de dominar todo o território, foram instituídas representações por toda a China, que, para além de passarem as diretivas e mensagens do partido, tinham a função de manter essas regiões controladas. O seu papel na explicação do programa do partido foi também fundamental para que as pessoas entendessem os objetivos do mesmo e o seu projeto de construção de uma nova China. O PCCh tinha, deste modo, a importante tarefa de manter unido um país de dimensão continental.
Foi estabelecida a Ditadura Democrática do Proletariado, baseada na definição dada por Mao no texto Sobre a Ditadura Democrática do Proletariado, firmada na liderança dos trabalhadores (operários e camponeses). “A combinação destes dois aspectos, democracia para o povo e ditadura para os reacionários, é a Ditadura Democrática do Proletariado.” (TSE-TUNG, 1977a, p. 391)Debatendo as críticas que existiam (e ainda existem) sobre o conceito de “Ditadura”, Mao rebate:
"Você é ditatorial". Meus queridos senhores, vocês estão certos, é exatamente o que somos. Toda a experiência que o povo chinês acumulou durante várias décadas ensinou-nos a reforçar a ditadura democrática do povo, isto é, privar os reacionários do direito de falar e deixar o povo apenas ter esse direito. (TSE-TUNG, 1978b, p. 417)
Guerras sucessivas marcaram a primeira metade do século XX na China, e, consequentemente, a situação econômica do país era bastante precária. A inflação, que acabou por influenciar a mudança de apoio do Guomindang para o PCCh, precisava ser controlada. Para tal,
o novo governo tomou o controle do sistema bancário e fechou a Bolsa de Valores de Shangai, o centro de especulações. Ao mesmo tempo, mobilizou uma grande quantidade de grãos, algodão, carvão e sal, produtos de primeira necessidade para a população das cidades. O Estado criou lojas estatais nas cidades e no campo, monopolizando a compra e venda de importantes produtos. Em consequência, baixou a inflação. A partir de março de 1950, os preços começaram a diminuir. (SHU, 2012, p. 19–20)
Desde o início do movimento revolucionário comunista, as mulheres foram organizadas em três categorias. O primeiro grupo eram as grandes heroínas, que se dedicavam totalmente à luta comunista, como Xiang Jingyu, a primeira mulher do PCCh. O segundo, as vítimas oprimidas do imperialismo e do feudalismo, e, por fim, as donas de casa e intelectuais burguesas, que eram desprezadas pelas restantes. Por sua vez, essa categorização era extremamente rígida e não contemplava todas as atividades que as mulheres desempenhavam. Anos mais tarde, após a consolidação da RPC, a categoria de trabalhadoras modelo passou a existir e a ser extremamente valorizada, uma vez que desempenhavam um importante papel no desenvolvimento produtivo do país.
Porém, mais tarde percebe-se que a emancipação das mulheres as convertera em trabalhadoras assalariadas de tempo contínuo, mas, em geral, muito mal pagas. Nesse ínterim, elas ainda eram as responsáveis pela família, com pouco acesso aos métodos anticoncepcionais e sujeitas à violência masculina habitual. Como ainda havia poucas geladeiras, elas ainda tinham que ficar em filas intermináveis para comprar gêneros de necessidade diária. (FAIRBANK; GOLDMAN, 2007, p. 323)
Outra mudança significativa foi a nova lei dos casamentos, que, para além de estabelecer a igualdade entre os sexos e acabar com a dominação masculina, permitia o divórcio. Em 1954, com a nova Constituição da RPC, o artigo 94º afirmava a igualdade das mulheres e dos homens em todas esferas, assim como o direito à proteção da mãe e do filho. Do mesmo modo, a Constituição previa, no artigo 86º, a possibilidade de eleição de mulheres para os cargos políticos: “As mulheres têm direitos iguais aos homens ao voto e para serem candidatas nas eleições.”(“Constitution of the People’s Republic of China”, 1954) Em contrapartida, na prática, poucas eram as mulheres que ocupavam cargos políticos, mesmo dentro do PCCh.
Era, no entanto, a primeira vez que as mulheres podiam ser livres, quebrando com a hierarquia rígida familiar, na qual deveriam reger-se pelas três submissões. A primeira era ao pai que, no momento do casamento, passava para o marido, e, em caso da sua morte, ao filho. Aliado ao fato de o nascimento de uma menina ser considerado como algo negativo, não se dava muita atenção à menina durante o seu crescimento. Considerava-se que não valia a pena o investimento, uma vez que no momento do casamento, a filha iria viver para a casa do marido e o vínculo era assim rompido. As jovens mulheres sofriam muito com casamentos arranjados e, de um momento para o outro, toda a realidade que conheciam passava a ser uma nova, numa nova casa e, muitas vezes, em uma nova cidade. Nessa nova vida, eram submetidas a uma nova família, que, na maior parte dos casos, não as recebia bem. Podiam, ainda, ser concubinas, sendo que estariam totalmente à mercê da esposa e dos seus maus-tratos.
Apesar de todas as transformações que aconteceram com a chegada dos comunistas ao poder, para Mao, a mulher tinha tanto valor como o homem, sobretudo na medida em que se aproximasse cada vez mais da sua imagem. Essa realidade colocava um problema muito grave, uma vez que passava pela anulação do feminino em prol das características masculinas. As mulheres tinham que se aproximar ao máximo do modo de agir masculino. Consequentemente, a igualdade passava pela anulação das características yin. No poema abaixo, escrito por Mao para Jue Zhu, podemos observar este fato:

Quão brilhantes e bravas parecem
Ao carregarem espingardas de 5 pés
Na parada, iluminadas pelos primeiros raios
Do dia
As filhas da China têm mentes elevadas
Amam as frentes de batalha
E não sedas e cetins.(ALVES, 2007, p. 156)

Visando acabar com o desemprego e organizar a estrutura produtiva do país, foram criadas as unidades de trabalho. Estas regiam toda a vida dos chineses, tanto no campo, como na cidade, provendo alimentação, educação, saúde, trabalho, casa, creches, amas de leite, ou seja, tudo o que fosse necessário para a subsistência pessoal e familiar era providenciado. A propaganda da altura afirmava que todos os chineses teriam o que vestir e o que comer, e as unidades iriam ajudar nessa missão. Paralelamente, o controle e conhecimento sobre a vida de cada cidadão era extenso. Houve, inclusive, casos de aconselhamento matrimonial pelas unidades, resolução de conflitos no seio familiar e social. 
Poucos meses após a fundação da RPC, em junho de 1950, iniciou a Guerra da Coreia (1950-1953). Com medo da ameaça dos EUA e a sua entrada na China, Mao resolveu apoiar a Coreia do Norte no conflito, mobilizando a sua população no esforço de guerra. Os “voluntários” chineses acabaram por decidir o rumo da guerra, conseguindo expulsar as forças estadunidenses e da ONU para sul do paralelo 38. As perdas humanas foram, de todos os países participantes no conflito, maiores para a China, figurando-se entre 700 e 900 mil pessoas(SHU, 2012, p. 31). De acordo com Shu, o conflito trouxe grandes benefícios para o PCCh, sobretudo em quatro aspectos: 1) o esforço de guerra acelerou a coletivização das terras agrícolas, ao mesmo tempo que aumentou o controle do PCCh sobre toda a atividade econômica do país; 2) as campanhas contra os contrarrevolucionários e imperialistas foram criadas, eliminando a oposição e consolidando os princípios socialistas; 3) promoveu a aproximação sino-soviética; 4) fortaleceu a imagem de Mao e do seu papel de liderança na RPC.(SHU, 2012, p. 31–32) Apesar de estar há pouco tempo no comando da RPC, a guerra da Coreia mostrou a capacidade de mobilização da população pelo Presidente Mao.
Entretanto, era preciso resolver também os problemas internos, sendo que um deles era acabar com os “inimigos sem armas”, os contrarrevolucionários. Para tal, a população foi encorajada a denunciar os inimigos de classe. Caixas foram instaladas nas cidades e vilas para recolher as denúncias. Como outras campanhas antidireitistas que aconteceram posteriormente, muitas das denúncias eram motivadas por razões pessoais, como o ódio por determinada pessoa. O alvo, no entanto, era a elite simpatizante do Guomindang, ou quem tivesse alguma ligação burguesa e capitalista. Estima-se que entre 1949-1953, cerca de dois a cinco milhões de pessoas tenham sido mortas(SHU, 2012, p. 19).
Por outro lado, um aspecto extremamente positivo da chegada dos comunistas ao poder foi a reformulação do ensino, com a inclusão das massas. “Em 1952, 60 por cento das crianças em idade escolar frequentavam o ensino e registou-se um surpreendente aumento do número de jovens nas escolas secundárias e superiores.(ROBERTS, 2012, p. 362)” Do mesmo modo, os adultos passaram a frequentar aulas também e grupos de estudo.
A matrícula nas escolas primárias da China quase dobrou entre 1957 e 1965, saltando de 51,000,000 em 1952 para 64,000,000 em 1957 e 116,000,000 em 1965. Isto representava 84,7% das crianças em idade escolar. No mesmo período, a matrícula no ensino médio aumentou de 3.100.000 para 7.000.000 em 1957 e 14.400.000 em 1965. (SAYWELL, 1980, p. 3)
No que respeita à economia, era preciso modificar a estrutura existente, baseada apenas em impostos e em taxas de produção, que durou nos primeiros anos, pela modernização de toda a estrutura econômica. Assim, em 1953, seguindo o modelo soviético, iniciou-se a transferência da propriedade privada para o setor público, dando início ao Primeiro Plano Quinquenal (1953-1957).
Tal como na URSS, deu-se prioridade à indústria pesada. Os investimentos econômicos e humanos vindos da União Soviética foram fundamentais para dar esse primeiro passo, sobretudo porque não havia pessoas qualificadas na China para impulsionar a indústria pesada.
Ao mesmo tempo, no campo, o processo de coletivização da agricultura avançava a um ritmo acelerado. O Partido incentivou a que os camponeses tomassem as terras e fizessem a redistribuição entre si, acabando com os latifúndios. Cada camponês, a partir de então, iria ter um pedaço de terra para produzir, o que, para o PCCh, iria aumentar consequentemente a produção. A tomada das terras foi um processo conturbado e violento, levando muitos à morte, a confiscação total dos bens, sessões de denúncia pública com espancamento e humilhação, que atingiram, sobretudo, os proprietários mais ricos. No final de 1952, 40 a 50 por cento das áreas agrícolas cultivadas da China tinham mudado de dono(LARDY, 1995, p. 153). Segundo Lardy,
“A reforma agrária melhorou a posição econômica dos camponeses mais pobres de forma decisiva, mas ficou longe de igualar os resultados finais. A parcela de renda acumulada para os 20% dos camponeses mais pobres quase dobrou entre os anos 1930 e 1952. Uma vez que o rendimento médio per capita do campo permaneceu inalterado no mesmo período, os rendimentos absolutos dos camponeses mais pobres duplicaram também. No entanto, a parcela da renda que corresponde aos 10% da população camponesa mais rica, correspondendo aos proprietários de terra e aos camponeses ricos, de acordo com as categorias do programa de reforma agrária do Partido Comunista Chinês, em termos proporcionais, foi reduzida apenas para um montante modesto, aproximadamente 10 por cento. Quase toda essa redução parece ter ocorrido nos rendimentos dos antigos proprietários de terra, que compreendiam a uma pequena minoria de 2,6 por cento de todas as famílias rurais. Os ex-proprietários, de acordo com uma estimativa, ficaram, pós-reforma, com tanta terra quanto os camponeses pobres, enquanto os prósperos camponeses médios e ricos continuaram possuindo quantidades significativamente maiores de terras e ganhando rendimentos bem acima da média”. (LARDY, 1995, p. 153)
Como uma das bandeiras que conquistou o apoio dos camponeses, a reforma agrícola acabou por criar uma nova elite dominante, como confirma o excerto acima. Como as terras podiam ser posteriormente vendidas/trocadas, houve, numa segunda fase, uma retomada na concentração de terras. Esta nova elite era “[...] oriunda da sociedade camponesa nas pessoas dos ativistas (quadros) do PCCh. [...] jovens ambiciosos e cheios de vitalidade encontravam uma oportunidade para ascender dentro da nova estrutura de poder.”(FAIRBANK; GOLDMAN, 2007, p. 326)
A coletivização da agricultura foi, para Fairbank,
“[...] bem mais complexa do que qualquer movimento previamente tentado na história da China pelo fato de que a RPC invadia a vida do povo até o nível das famílias, que agora faziam parte de uma Cooperativa de Produtores Rurais ou (depois) de grupos de produção. Na realidade, os fazendeiros não mais possuíam nem arrendavam terras, tampouco dispunham do seu próprio trabalho ou do que conseguiam produzir. Eles foram rotulados como membros de uma determinada classe e obrigados a participar do trabalho, de reuniões e outras atividades coletivas das quais dependiam suas vidas”.(FAIRBANK; GOLDMAN, 2007, p. 326)
Em 1955, foi instituído o hùkǒu bù (戶口簿), um de cadastro dos chineses de acordo com a sua residência. Este sistema foi criado tendo em vista controlar as migrações do campo para a cidade e servia, igualmente, para fazer o racionamento e distribuição de bens. Quem fosse de uma determinada região, só tinha direito à sua provisão de alimentos nesse local. Segundo Shu, era também uma forma de documento de identidade, uma vez que era preciso identificar-se para retirar os bens distribuídos pelo PCCh(SHU, 2012, p. 26). As mudanças eram, devido ao sistema, difíceis e precisavam de autorização. Deste modo, o partido conseguia manter um controle social. Entretanto, o Primeiro Plano Quinquenal já tinha iniciado e começava a mostrar efeitos positivos na economia. Nessa época, “[...] a produção industrial chinesa duplicou, tendo os maiores aumentos ocorrido nos setores do aço, petróleo e produtos químicos [...]”(ROBERTS, 2012, p. 367), como podemos ver na tabela abaixo:
Tabela 1. Evolução da produção chinesa (1952 -1957)(SHU, 2012, p. 22)

Josef Stalin morre em 1953, sendo substituído por Nikita Kruschev. A morte do líder soviético deu uma maior independência à Mao, e, no seguimento do discurso de Kruschev em 1957, que dizia que a produção de bens agrícolas na URSS iria ultrapassar os EUA, Mao publicou logo uma resposta:
Este ano, o nosso país tem 5,2 toneladas de aço e, após cinco anos, poderemos ter de 10 a 15 milhões de toneladas; depois de mais cinco anos, de 20 a 25 milhões de toneladas; somem, então, mais cinco anos e teremos de 30 a 40 milhões de toneladas. Talvez eu esteja me gabando aqui e talvez, quando tivermos outro encontro internacional no futuro, vocês me critiquem por ser subjetivo, mas falo com base em considerável prova. [...] O camarada Kruschev nos diz que a União Soviética superará os Estados Unidos em quinze anos. Eu posso dizer-lhes que, em quinze anos, nós bem poderemos nos equiparar ou ultrapassar a Grã-Bretanha.(DIKÖTTER, 2017, p. 41–42)
Com esta declaração, havia começado o Grande Salto em Frente. Em 1958, no dia do ano novo chinês, foi publicado no Diário do Povo um chamado à população: “Façam tudo o que for possível e tenham altas ambições.”(DIKÖTTER, 2017, p. 44)
O Grande Salto em Frente tinha, por objetivo, uma modernização aceleradíssima do processo produtivo, de maneira a que a economia chinesa passasse a competir com as maiores do mundo em um curto período. O radicalismo utópico da proposta estava assente no slogan publicado no Diário do Povo em novembro de 1957: “mais, melhor, mais rápido e mais barato.”(ROBERTS, 2012, p. 372)
Durante o Grande Salto em Frente, à medida que o número de fábricas aumentava, o número de operários também. Como a alimentação ficava sob a responsabilidade do campo, a produção agrícola tinha que corresponder ao aumento da demanda, o que não era possível. Paralelamente, os agricultores foram envolvidos em grandes projetos paralelos - irrigação dos campos, a “febre do aço” - fazendo com que não tivessem tempo para trabalhar no campo, o que, consequentemente, diminuiu, ainda mais, a sua produtividade.
Entretanto, uma campanha para a produção do aço foi lançada. Grande parte da mão de obra agrícola foi direcionada para a produção de aço. Fornos foram construídos para derreter os materiais recolhidos, uma junção de tudo em aço que as pessoas tinham em casa, inclusive as panelas wok foram derretidas. O maior desafio era manter os fornos acessos, que, ainda por cima, não eram industriais, mas improvisados. Como tinham que ficar acesos dia e noite, os trabalhadores revezavam-se numa jornada incessante de trabalho. Tudo o que era de madeira disponível foi queimado, inclusive caixões do cemitério e casas foram desmontados e queimados.
Nessas condições, a maior parte do aço que foi produzido era de muita má qualidade, não podendo ser utilizado. Todo o esforço foi inútil para as metas de produção. As metas eram baseadas em ideais irrealistas de produção, o que fazia com que, mesmo que o aço produzido fosse de qualidade, nunca poderiam ser atingidos os objetivos de produção. Na verdade, ninguém queria decepcionar o Presidente Mao e as organizações de trabalho propunham metas impossíveis, até para competirem com outras unidades. Foi uma época de verdadeiro frenesim, onde a pressão e a vontade de atingirem as metas eram tantas, que muitas pessoas acreditavam ser possível produzir tanto. Inclusive, em uma das visitas que Mao fez ao campo, a unidade de produção que o recebeu encenou plantações maiores do que tinham, tendo movido brotos de arroz de um local para o outro, de modo a parecer que a produção por lí () era maior do que na realidade.
Uma das técnicas para aumentar a produção agrícola, era colocar mais fertilizantes e sementes, acreditando que assim a produção aumentaria exponencialmente. Nas cidades, os dejetos humanos eram recolhidos e enviados para o campo, para serem utilizados como fertilizantes. Foi uma verdadeira mobilização de um país inteiro em prol de um objetivo comum: a modernização rápida da economia.
Apesar das boas intenções, os resultados das políticas econômicas foram desastrosos. Dado à mentira criada a volta da produção, o governo central, que acreditava nos recordes, mandava quotas de recolha de bens maiores do que os que foram produzidos, fazendo com que não sobrassem bens suficientes para alimentar as famílias que faziam parte das unidades. De acordo com Roberts,
“à euforia do Grande Salto de 1958 seguiu-se a desilusão e a discórdia do ano seguinte. Tornou-se tão evidente que os anúncios de colheitas abundantes tinham sido exagerados e que as metas industriais eram irrealistas. [...] A queda da produção de alimentos e o colapso do sistema de distribuição causaram uma fome sem precedentes no século XX”. (ROBERTS, História da China, p. 376)
Ao mesmo tempo que os Planos Quinquenais avançavam na China, era preciso fazer algo sobre os descontentes que começavam a emergir e a criticar os planos econômicos do governo. A partir de 1955, a política de coletivização das terras, a de transferência de empresas e fábricas para o domínio público, começou a gerar ondas de revoltas. Enquanto a primeira campanha antidireitista ainda tolerava os burgueses capitalistas, a partir de 1955, o partido tomou uma linha mais dura, sobretudo devido à conjuntura. Stalin tinha morrido há pouco tempo, e, três anos depois, Kruschev denunciava aos crimes do antigo líder soviético publicamente. Essa atitude foi vista por Mao como “[...] um desafio à sua própria autoridade [...].”(DIKÖTTER, 2017, p. 34) Em 1956, a Hungria revoltou-se contra o domínio da URSS, o que causou também grande preocupação para Mao. Hu Feng, poeta chinês, resolveu criticar o governo e as suas políticas econômicas abertamente, o que fez com que fosse lançada uma campanha para descredibilizá-lo perante o público. Neste mesmo ano, durante o oitavo Congresso do PCCh, a constituição da RPC foi revista e as menções ao Pensamento de Mao Zedong foram retiradas, o que causou grande admiração ao Grande Timoneiro.
No seu discurso sobre as dez principais relações na revolução e construção da China socialista, de 25 de abril de 1956, Mao afirma sobre a relação entre o que é certo e errado: “a política de "aprender com erros do passado para evitar futuros e curar a doença para salvar o paciente" é uma política para unir o Partido inteiro. Devemos cumprir esta política.” (TSE-TUNG, 1977b, p. 302)  Nesta conjuntura, em maio de 1956, lançaram a campanha: “Que cem flores floresçam e cem escolas do pensamento discutam entre si.”, um convite aberto para a expressão de opiniões dentro da China. De acordo com Roberts, Mao atribuiu a revolta na Hungria ao distanciamento entre o partido comunista húngaro das massas e dos intelectuais, algo que procurava evitar agora.
“Deixar que cem flores floresçam e cem escolas de pensamento debatam entre si é a política para promover o progresso nas artes e ciências e uma cultura socialista florescente em nossa terra. Diferentes formas e estilos artísticos devem desenvolver-se livremente e as diferentes escolas científicas devem disputar livremente. Consideramos ser prejudicial ao crescimento da arte e da ciência se as medidas administrativas são usadas para impor um estilo particular de arte ou escola de pensamento e banir outro. As questões certas e erradas nas artes e nas ciências devem ser resolvidas através de uma discussão gratuita em círculos artísticos e científicos e através de trabalhos práticos nestes campos. Não devem ser resolvidos de forma simples demais”.(TSE-TUNG, 1977a, p. 408)
Os discursos e publicações que se seguiram incentivando o “florescimento das cem flores”, levaram a que os intelectuais considerassem que podiam, de fato, expressar livremente as suas opiniões. Numa primeira fase, as críticas foram suaves. Numa segunda fase, a partir de 1957, começaram a ganhar ímpeto. Junto à Praça de Tiananmen, foram colocados cartazes criticando altos funcionários do PCCh e as políticas do governo. O PCCh esperava que as críticas, de alguma forma, juntassem o povo, mas acabaram por trazer grandes divisões e instabilidade política. De acordo com Goldman, Mao não esperava que esta campanha fosse gerar tantas críticas ao seu governo, tendo ganhado um fervor próprio(GOLDMAN, 1995, p. 212–258).  Para Dikötter, por outro lado, a campanha não passou de um pretexto para identificar os contrarrevolucionários(DIKÖTTER, 2017, p. 35). Em junho de 1957,
“Mao publicou, no Diário do Povo, um editorial intitulado “Por que isso?”, acusando os direitistas burgueses de “aproveitarem o Movimento das Cem Flores para desafiar a liderança do PCCh e da classe proletária.” No mesmo dia, o Comitê Central divulgou, entre os quadros de alto escalão, o decreto do próprio Mao Zedong, “Organizar os contra-ataques às ofensivas tumultuosas dos elementos direitistas”, onde afirmou: “É uma guerra. Se nós não vencermos, o socialismo jamais seria edificado, e a China correria o risco de se transformar numa outra Hungria”.(SHU, 2012, p. 38)
Segundo Shu, esta campanha atingiu mais de quatro milhões de pessoas, direta ou indiretamente(SHU, 2012, p. 42). Este medo e insegurança explica como, no ano seguinte, quando o Grande Salto em Frente foi lançado, ninguém duvidava ou ousava duvidar do programa adotado pelo governo, ou das informações falsas que circulavam sobre os avanços impressionantes da economia. Assim,
“o colapso do Grande Salto para a Frente e o consequente colapso da utopia coletivista na China tiveram um impacto profundo sobre o pensamento do Presidente Mao. Fracassado na transformação material da China, começou a concentrar toda a sua energia para lutar contra o “revisionismo” representado por Liu Shaoqi e a maioria dos quadros do Partido. Desde 1962 o PCCh e seu presidente começaram a se distanciar.  Mao começava a preparar uma revolução cultural para preservar a vitalidade da revolução chinesa e exorcizar o “revisionismo” e os seus seguidores no interior do PCCh. O armageddon iria acontecer em 1966, quando Mao lançaria a Revolução Cultural”.(SHU, 2012, p. 68–69)          
Referências
Membro integrado do CHAM – Centro de Humanidades, da Universidade Nova de Lisboa e coordenadora do subgrupo de pesquisa "Formas de representação e Governo". Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa. Licenciada em Relações Internacionais pela Universidade Católica de Lisboa. Especialista em História Contemporânea da República Popular da China. Áreas de interesse de investigação: Cartazes de Propaganda, Propaganda, Mídia de Massa, História Contemporânea, História das Mulheres, Relações Internacionais, História da Ásia com ênfase na China.
ALVES, A. C. A Mulher na China. Lisboa: Editorial Tágide, 2007.
CHANG, J.; HALLIDAY, J. Mao: a história desconhecida. São Paulo: Companhia Das Letras, 2006.
Constitution of the People’s Republic of China. Foreign Languages Press Peking, , 1954. Disponível em: <http://e-chaupak.net/database/chicon/1954/1954ae.pdf>
DIKÖTTER, F. A grande fome de Mao. Rio de Janeiro: Editora Record, 2017.
FAIRBANK, J. K.; GOLDMAN, M. China - uma nova história. Traducao Marisa Mota. 2a ed. Porto Alegre: L&PM, 2007.
GELBER, H. G. O Dragão e os Diabos estrangeiros: A China e o mundo, de 1100 a.C. até à actualidade. Lisboa: Guerra e Paz, 2008.
GOLDMAN, M. The Party and the intellectuals. In: MACFARQUHAR, R.; FAIRBANK, J. K. (Eds.). . The people’s republic: part 1: the emergence of revolutionary China (1949-1965). The Cambridge history of China. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1995.
LARDY, N. R. Economic recovery and the 1st Five-Year Plan. In: MACFARQUHAR, R.; FAIRBANK, J. K. (Eds.). . The people’s republic: part 1: the emergence of revolutionary China (1949-1965). The Cambridge history of China. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1995.
LEE, L. X. H. et al. (EDS.). Biographical dictionary of Chinese women. Armonk, N.Y: M. E. Sharpe, 1998.
ROBERTS, J. A. G. História da China. Lisboa: Edições texto & grafia, 2012.
SAYWELL, W. G. Education in China Since Mao. The   Canadian   Journal   of  Higher   Education, v. X–1, 1980.
SHU, S. A história da China Popular no século XX. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2012.
TSE-TUNG, M. Correct Handling of Contradictions Among the People. In: Selected works of Mao Tse-tung. 1. Aufl ed. Oxford: Pergamon Pr. [in Komm.], 1977a. v. 5.
TSE-TUNG, M. On ten major relationship. In: Selected works of Mao Tse-tung. 1. Aufl ed. Oxford: Pergamon Pr. [in Komm.], 1977b. v. 5.
TSE-TUNG, M. Selected works of Mao Tse-tung. [s.l: s.n.]. v. 4
TSE-TUNG, M. On the People’s Democratic Dictatorship. In: Selected works of Mao Tse-tung. [s.l: s.n.]. v. 4

2 comentários:

  1. Cara Daniele,
    seu texto tem grande qualidade. Queria que você explanasse sobre o seguinte: a manutenção do plano, apesar de todos os seus problemas, convinha a uma perspectiva ideológica maoísta - ou, de um distanciamento com a realidade, ou falta de experiência no campo do planejamento?
    agradeço,
    André Bueno

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  2. Caro André Bueno,

    Muito obrigada pela leitura do meu texto e pela pergunta. Como leitora dos seus livros, sinto-me honrada.

    A manutenção do plano, como referiu, convinha tanto a nível da ideologia de Mao como havia sim uma grande falta de experiência e de planejamento adequado. Queria-se muito e em pouco tempo. Mao, compreendendo a realidade chinesa agrícola, pretendia, em poucos anos, ultrapassar a produção da Inglaterra e ocupar um lugar de destaque no mundo. Este lugar dar-lhe-ia o prestígio internacional que o novo regime comunista precisava, ao mesmo tempo que provaria a sua capacidade de liderança de Mao. Para além disso, juntou-se uma vontade gigantesca da população em cumprir as metas de produção que eram totalmente irrealistas. Juntava-se, do mesmo modo, uma falta de conhecimento em técnicas de plantio, onde acreditavam que a utilização, por exemplo, de muito adubo e químicos, iria conseguir aumentar a produção de forma exponencial. Em visitas, Mao e a sua comitiva foram enganados algumas vezes, onde apareciam grandes campos plantados, mas que, na verdade, eram plantações que tinham sido mudadas de lugar alguns dias antes. Igualmente, os relatórios de produção eram adulterados, já que nada era mais temido do que não cumprir a metas fixadas pelo Grande Timoneiro. As unidades agrícolas mostravam ter produzido tanto que o governo central pedia uma cota de produção maior do que o total produzido e, deste modo, morriam muito a fome.
    Outro aspecto que gostaria de destacar é o lugar do camponês, que Mao o fez sentir-se, pela primeira na história, incluído e a força mais importante do processo produtivo na China. Isso também aumentou a sua adesão à ideia completamente sem fundamento material, tecnológico e humano, resultando na forte mobilização.
    Considero, assim, que o Grande Salto em Frente foi uma conjugação de todos esses fatores que referiu na pergunta.
    Daniele Prozczinski

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