Jeane Carla


PAISAGEM E GÊNERO: REPRESENTAÇÕES DO SUDESTE ASIÁTICO E DA MULHER FRANCESA NA OBRA O AMANTE, DE MARGUERITE DURAS
Jeane Carla Oliveira de Melo

L´amant (O amante), obra da escritora, cineasta e roteirista francesa Marguerite Duras (1914-1996) foi publicada em 1984, obtendo logo de imediato reconhecimento nos círculos letrados europeus, ganhando o prestigiado prêmio literário Goncourt. O livro se tornou best-seller traduzido para mais de quarenta idiomas e rendeu também o filme L´amant, dirigido pelo cineasta Jean-Jacques Annaud em 1992, conquistando sucesso de público e crítica. Neste breve artigo, esboçaremos algumas das representações sobre o sudeste asiático e a mulher francesa na escrita durassiana. Do ponto de vista das relações entre história, memória e literatura, percebemos os discursos literários como fontes históricas construídas socialmente e permeadas por instabilidades e contingências de acordo com seu contexto de produção (RICOEUR, 2007). Também lançaremos mão da fértil contribuição de Yi-Fu-Tuan (1983), para pensar a questão cultural da paisagem enquanto experiência subjetiva a partir de uma abordagem humanista.
Ambientado na década de 1930 em Saigon (sul do atual Vietnã), narra tanto em primeira quanto em terceira pessoa as memórias de infância e adolescência da escritora Marguerite Duras. Escrito de modo a provocar efeitos autobiográficos (PARAISO, 2001), com passagens não-lineares de tempo e uma voz narrativa que recorda, reelabora e reinventa seu passado, Duras nos traz para o movediço campo em que coabitam memória e ficção delineados por meio de uma escrita confessional e retrospectiva. Já no terceiro parágrafo ela diz: “muito cedo foi tarde demais em minha vida. Aos dezoito anos já era tarde demais” (DURAS, 2001, p.6).
Entre o desabafo e a constatação de que a sua vida fora uma sequência interrompida de sentimentos e experiências, é na passagem do tempo que a escritora francesa situa a sua subjetividade. O tempo é um dos elementos centrais da sua escrita. Neste ponto, a obra põe a dialogar a adolescente que vive e a mulher que narra. Assim vai até o fim. L´amant é também a história pessoal de uma jovem assenhorando-se de si mesma em meio a imensos conflitos familiares. Traz também o seu encontro com o sexo e com o afeto embora permeado por ambiguidades – traduzidos no relacionamento com um milionário chinês doze anos mais velho.
Marguerite narra a história da própria vida que tem ligações estruturais com o lugar onde nasceu em Saigon em 1914; por sua vez, a cidade à época integrava a Indochina como território colonial francês. É o relato da memória da menina branca, filha de pais professores – o pai, professor de Matemática e a mãe, diretora de uma escola direcionada ao sexo feminino. Possui dois irmãos, o mais velho, um opiômano descrito como cruel e “assassino” e o irmão do meio, Paul, oprimido pelo primogênito da família. Pela mãe nutre sentimentos contraditórios. Reconhece na figura materna a existência de uma tristeza atávica oriunda das imensas obrigações de sua condição de mulher viúva e empobrecida tendo que cuidar de uma família de três filhos em um contexto de decadência material e moral.
Além da dimensão do tempo, a geografia do sudeste asiático também ocupa uma centralidade nas suas memórias, contribuindo para delinear os modos como descreve e interage com lugares mencionados no texto, a saber: Sadec (onda mora a sua família) e Saigon (onde estuda no liceu francês e vive a relação com o amante chinês). A narrativa é perpassada por descrições do espaço físico do atual Vietnã, conforme ilustram as seguintes passagens:
“Permitam-me dizer, tenho quinze anos e meio. Uma balsa desliza sobre o Mekong. A imagem permanece durante toda a travessia do rio. Tenho quinze anos e meio, esse país não tem estações, vivemos numa estação só, quente, monótona; vivemos na longa zona quente da terra, sem primavera, sem renovação” (DURAS, 2001, p.6):
“É, portanto, durante a travessia de balsa de um braço do Mekong entre Vinhlong e Sadec, na grande planície de lodo e arroz do sul da Cochinchina, a planície dos Pássaros. Desço do ônibus. Vou até a amurada. Olho o rio. Às vezes minha mãe me diz que nunca, em toda a minha vida, voltarei a ver rios tão belos, tão grandes, tão selvagens, o Mekong e seus braços que descem para os oceanos, esses territórios de água que vão desaparecer nas cavidades dos oceanos. Na planura a perder de vista, esses rios correm velozes, deslizam como se a terra se inclinasse” (DURAS, 2001, p.8)
De acordo com Yi-Fu-Tuan (1983) são as experiencias humanas que conferem sentido e identidade aos lugares; já as paisagens são percebidas por meio da sensibilidade e da vivência por meio de uma construção social viva, capaz de expressar a relação do sujeito com o mundo. É nessa Indochina quente, morna e de natureza exuberante que a narrativa de Marguerite se desenrola. Apesar de ser francesa (considerando que nascera em um território colonial franco), até os 18 anos a Indochina é o único lugar que conhece, portanto, ao narrar suas experiências juvenis ela fala a partir da posição social como mulher branca do sudeste asiático na primeira metade do século XX.
Em uma sociedade definida através do colonialismo racista europeu, a “superioridade” de Marguerite e sua família se encontra no fator raça – e apenas isso, uma vez que seus pais ocupavam cargos menores sendo considerados apenas pequenos profissionais liberais de Saigon. A mãe ainda investiu o patrimônio da família em terras por meio de concessões para plantar arroz, mas foi enganada e passada para trás: os terrenos comprados eram alagadiços, inviabilizando o cultivo do grão e acelerando a penúria financeira da família. Como única opção de sobrevivência, só restou à mulher ser professora e diretora da escola de Sadec.
Em retorno de férias, aos quinze anos e meio Marguerite encontra o seu amante em uma balsa que deslizava o rio Mekong. Sobre o chinês “Ele pertence a essa minoria financeira de origem chinesa que possui todos os imóveis populares da colônia” (DURAS, 2001, p.13). Após esse encontro, iniciam um romance sentimentalmente interditado pela condição social de ambos. Por mais que ele a ame e a queira, não podem se casar. A família do chinês (que o sustenta) jamais aceitaria que ele se casasse com uma mulher branca – e, seu futuro enlace com outra rica herdeira de família chinesa já estava acertado. Marguerite também tinha outros planos: ao final do secundário continuar seus estudos em Paris. Sobre a brevidade do relacionamento, a autora diz que
“Durante todo o tempo da nossa história, um ano e meio, falaremos dessa maneira, nunca falaremos de nós. Desde os primeiros dias sabemos que é inconcebível um futuro em comum, então jamais falaremos do futuro, teremos conversas como que jornalísticas, ora discutindo, ora concordando” (DURAS, 2001, p.17).
O romance da adolescente e do chinês, portanto, estava fadado a não durar. Ele iria casar-se enquanto ela se ausentaria de Saigon para sempre. Para além dos planos destoantes, classe e raça se entrelaçam e dão formato a relação proibida, que sempre permanecerá na clandestinidade e nos encontros furtivos na garçonnière instalada em Cholen, bairro chinês de Saigon. Para Marguerite, essa relação representa além da descoberta da paixão e do sexo, uma oportunidade de contribuir com a sua família que está em situação de penúria material. Por receber dinheiro, ela própria se descreve como “pequena prostituta branca do posto de Sadec” (DURAS, 2001, p.13). Apesar do escândalo causado na vizinhança, a mãe de Marguerite consente que a filha se encontre com o homem chinês – já que este lhe dava dinheiro e presentes caros, como um anel de diamante. A vida da menina de repente passar a girar em torno de estar disponível para o chinês, recebendo em troca algumas regalias e privilégios que jamais pudera ter: “nunca mais farei a viagem no ônibus dos nativos. A partir de agora, terei uma limusine para ir ao liceu e para me levar de volta ao pensionato. Jantarei nos lugares mais elegantes da cidade.” (DURAS, 2001, p.13).
Marguerite e o chinês experimentam uma relação marcada por ambiguidades. A menina, dentro do seu privilégio apenas racial, mas já bastante significativo naquele contexto, se mantem como a que conduz a história de ambos. Ela é mais firme, mais assertiva e sempre lembra que está ali também pelo dinheiro.  Ora ela desdenha, ora quer estar com o amante. Já o chinês é exortado como um homem fraco, frágil, apaixonado e que por essas razões mesmas tomba diante do amor que sente pela menina, embora não conseguindo enfrentar as convenções sociais, como ilustra a passagem: “descubro que não tem força para me amar contra seu pai, me pegar, me levar com ele. Ele chora muito porque não encontra forças para amar além do medo. Seu heroísmo sou eu, sua servidão é o dinheiro do pai” (DURAS, 2001, p.17). Mesmo estando supostamente no controle afetivo da relação, Marguerite e o chinês se amam intensamente, ainda que não declarem; a atmosfera sensorial criada por Duras para descrever os encontros sexuais dos dois remete ao calor tropical do sudeste asiático que paira em meio à desordem do bairro chinês de Cholen – marcado pelas sombras dos transeuntes, vendedores ambulantes, cheiro de sopa e mendigos esmolando nas ruas.
A família da jovem, tão paralisada quanto violenta entre eles mesmos, não põe mais obstáculos para que Marguerite e o amante possam se ver todos os dias. Ignoram, portanto, a imensa diferença de idade da adolescente com quinze anos e o homem doze anos mais velho, assim como fazem vista grossa às diferenças sociais e de relações de poder de modo a obterem vantagens financeiras (KUNTZ, 2016). Diante de tais atitudes consideradas permissivas, a família francesa passa a não mais gozar de boa reputação na localidade uma vez que permitiram a “desonra” da filha com um homem que, além de não se casar com ela, era chinês.
Relações interraciais soavam escandalosas na Indochina francesa, sobretudo entre europeus e nativos. Esmagados pelas normas sociais, a separação do casal é o anti-clímax anunciado desde o início: não há outra saída a não ser o interdito como desfecho. Na narrativa resta claro que o conflito racial é aberto e contribui para demarcar o lugar de poder e altivez afetiva da adolescente sobre o milionário chinês. Todavia, é ele quem possui o poder material, ditando também o ritmo dos acontecimentos. É um amor envolto em densas relações de poder assimétricas por conta dos efeitos sociais do regime colonial francês. Cultura e sentimento, portanto, também possuem uma dimensão política e estão atravessados por questões dos seus próprios tempos.
Referências
Jeane Carla Oliveira de Melo é professora de História do IFMA Campus Alcântara e doutoranda em História Social da Cultura pela UFMG.
DURAS, Marguerite. O amante. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
KUNTZ, Maria Cristina Viana. Marguerite Duras e o desejo de escrevem em O Amante. In: anais do XV Simpósio Abralic, 2016.
PARAISO, Andrea Correa. Marguerite Duras e os impossíveis da escritura: a incansável busca. São Paulo: Editora Unesp, 2001.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: DIFEL, 1983.

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