Paulo Cabrini


HEIDEGGER E A FILOSOFIA CHINESA SOB UMA PERSPECTIVA AMBIENTALISTA
Paulo de Tarso Cabrini Jr.

Poucos textos têm o poder de nos surpreender a cada leitura, revelando a fluidez com que foram escritos. É o caso de “O caminho do campo”, de Martin Heidegger.
Heidegger, como sabemos, é um personagem controverso pelas ligações que teve com a Alemanha nazista. No entanto, como pensador do Ser, produziu obras incomparáveis, dentre as quais “O caminho do campo” se destaca.
A fim de podermos compreender bem as situações que o texto nos coloca, neste ensaio, reproduzo o texto integralmente, tal como aparece no blog de onde o retirei, com tradução de Ernildo Stein e José Geraldo Nogueira Moutinho.

O CAMINHO DO CAMPO
Por Martin Heidegger
Do portão do Jardim do Castelo estende-se até as planícies úmidas do Ehnried. Sobre o muro, as velhas tílias do Jardim acompanham-no com o olhar, estenda ele, pelo tempo da Páscoa, seu claro traço entre as sementeiras que nascem e as campinas que despertam, ou desapareça, pelo Natal, atrás da primeira colina, sob turbilhões de neve. Próximo da cruz do campo, dobra em busca da floresta. Saúda, de passagem, à sua orla, o alto carvalho que abriga um banco esquadrado na madeira crua.
Nele repousava, às vezes, este ou aquele texto dos grandes pensadores, que um jovem desajeitado procurava decifrar. Quando os enigmas se acotovelavam e nenhuma saída se anunciava, o caminho do campo oferecia boa ajuda: silenciosamente acompanha nossos passos pela sinuosa vereda, através da amplidão da terra agreste.
O pensamento sempre de novo às voltas com os mesmos textos ou com seus próprios problemas, retorna à vereda que o caminho estira através da campina. Sob os pés, ele permanece tão próximo daquele que pensa quanto do camponês que de madrugada caminha para a ceifa.
Mais frequente com o correr dos anos, o carvalho à beira do caminho leva a lembrança aos jogos da infância e às primeiras escolhas. Quando, às vezes, no coração da floresta tombava um carvalho sob os golpes do machado, meu pai logo partia, atravessando a mataria e as clareiras ensolaradas, à procura do estéreo de madeira destinado à sua oficina. Era lá que trabalhava solícito e concentrado, os intervalos de sua ocupação junto ao relógio do campanário e aos sinos, que, uns e outros, mantêm relação própria com o tempo e a temporalidade.
Os meninos, porém, recortavam seus navios na casca do carvalho. Equipados de banco para o remador e de timão, flutuavam os barcos no Mettenbach ou no lago da escola. Nesses folguedos, as grandes travessias atingiam facilmente seu termo e facilmente recobravam o porto. A dimensão de seu sonho era protegida por um halo apenas discernível, pairando sobre todas as coisas. O espaço aberto era-lhe limitado pelos olhos e pelas mãos da mãe. Tudo se passava como se sua discreta solicitude velasse sobre todos os seres. Essas travessias de brinquedo nada podiam saber das expedições em cujo curso todas as margens ficam para trás. Entrementes, a consistência e o odor do carvalho começavam a falar, já perceptivelmente, da lentidão e da constância com que a árvore cresce. O carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer pode fundar o que dura e frutifica; que crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente as duas coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz.
Isto o carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro de seu destino. O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno dele; e dá a cada um dos que o percorrem aquilo que é seu. Os mesmos campos, as mesmas encostas da colina escoltam o caminho em cada estação, próximos dele com proximidade sempre nova. Quer a cordilheira dos Alpes acima das florestas se esbata no crepúsculo da tarde, quer de onde o caminho ondeia entre os outeiros a cotovia da manhã se lance no céu de verão, que o vento leste sopre a tempestade do lado em que jaz a aldeia natal da mãe, quer o lenhador carregue, ao cair da noite, seu feixe de gravetos para a lareira, quer o carro da colheita se arraste em direção ao celeiro oscilando pelos sulcos do caminho, quer apanhem as crianças as primeiras primaveras na ourela do prado, quer passeie a neblina ao longo do dia sua sombria massa sobre o vale, sempre e de todos os lados fala, em torno do caminho do campo, o apelo do Mesmo.
O Simples guarda o enigma do que permanece e do que é grande. Visita os homens inesperadamente, mas carece de longo tempo para crescer e amadurecer. O dom que dispensa está escondido na inaparência do que é sempre o Mesmo. As coisas que amadurecem e se demoram em torno do caminho, em sua amplitude e em sua plenitude dão o mundo. Como diz o velho mestre Eckhart, junto a quem aprendemos a ler e a viver, é naquilo que sua linguagem não diz que Deus é verdadeiramente Deus.
Todavia, o apelo do caminho do campo fala apenas enquanto homens nascidos no ar que os cerca forem capazes de ouvi-lo. São servos de sua origem, não escravos do artifício. Em vão o homem através de planejamentos procura instaurar uma ordenação no globo terrestre, se não for disponível ao apelo do caminho do campo. O perigo ameaça, que o homem de hoje não possa ouvir sua linguagem. Em seu ouvido retumba o fragor das máquinas, que chega a tomar pela voz de Deus. Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o Simples parece uniforme. A uniformidade entedia. Os entediados só veem monotonia a seu redor. O Simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa esgotou-se.
O número dos que ainda conhecem o Simples como um bem que conquistaram, diminui, não há dúvida, rapidamente. Esses poucos, porém, serão, em toda a parte, os que permanecem. Graças ao tranquilo poder do caminho do campo, poderão sobreviver um dia às forças gigantescas da energia atômica, que o cálculo e a sutileza do homem engendraram para com ela entravar sua própria obra.
O apelo do caminho do campo desperta um sentido que ama o espaço livre e que, em momento oportuno, transfigura a própria aflição na serenidade derradeira. Esta opõe-se à desordem do trabalho pelo trabalho: procurado apenas por si, o trabalho promove aquilo que nadifica.
Do caminho do campo ergue-se, no ar variável com as estações, uma serenidade que sabe, e cuja face parece muitas vezes melancólica. Esta gaia ciência é uma sagesa sutil. Ninguém a obtém sem que já a possua. Os que a têm, receberam-na do caminho do campo. Em sua senda cruzam-se a tormenta do inverno e o dia da messe, a irrupção turbulenta da primavera e o ocaso tranquilo do outono; a alegria da juventude e a sabedoria da maturidade nela surpreendem-se mutuamente. Tudo porém se insere placidamente numa única harmonia, cujo eco o caminho do campo em seu silêncio leva de um para outro lado.
A serenidade que sabe é uma porta abrindo para o eterno. Seus batentes giram nos gonzos que um hábil ferreiro forjou um dia com os enigmas da existência.
Das baixas planícies do Ehnried, o caminho retorna ao Jardim do Castelo. Galgando a última colina, sua estreita faixa transpõe uma depressão e chega às muralhas da cidade. Uma vaga luminosidade desce das estrelas e se espraia sobre as coisas. Atrás do Castelo alteia-se a torre da Igreja de São Martinho. Vagarosamente, quase hesitantes, soam as badaladas das onze horas, desfazendo-se no ar noturno. O velho sino, em suas cordas outrora mãos de menino se aqueciam rudemente, treme sob o martelo das horas, cuja silhueta jocosa e sombria ninguém esquece.
Após a última batida, o silêncio ainda mais se aprofunda. Estende-se até aqueles que foram sacrificados prematuramente em duas guerras mundiais. O Simples torna-se ainda mais simples. O que é sempre o Mesmo desenraiza e liberta. O apelo do caminho é agora bem claro. É a alma que fala? Fala o mundo? Ou fala Deus?
Tudo fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável do Simples. O apelo faz-nos de novo habitar uma distante Origem, onde a terra natal nos é devolvida.
(http://caminhodocampo.blogspot.com).

Espero que o leitor tenha emprestado à sua leitura a mesma antecipação lúdica que me trouxe a vibração alegre e tênue de uma tarde de inverno frigidíssimo, no interior de São Paulo.
Da primeira vez que conheci este texto, não o compreendi totalmente, nem sequer a sua metade. Daí a importância que damos à palavra dos professores, que nos garantem a qualidade dos materiais que nos colocam à disposição e à leitura objetiva.
Essa primeira leitura eu a fiz em Assis, em 2005, dentro do curso de Filosofia e Literatura, ministrado pelo Prof. Dr. José Carlos Zamboni, grande literato, aliás. E com ligações com a direita, que hoje nós chamamos de fascista.
O leitor que chegou até aqui pode perceber que o texto de Heidegger é, fundamentalmente, autobiográfico, ou aproveita a autobiografia para mergulhar na questão da existência com garras de Poeta.
A nossa proposta, aqui, é discutir, ou antes apontar algumas questões relativas ao pensamento chinês, que surgem da leitura de “O caminho do campo”, e que o “orientalista” mais avisado já deve ter notado.
Mas, esse caminho do campo que empreenderemos pelo “Caminho do campo” passa por fontes insuspeitas, que surgem dos aquíferos de minha própria bagagem de leituras. Por exemplo, o primeiro parágrafo me lembrou o poeta norte-americano Robert Frost, um dos maiores de todos os tempos, ou, pelo menos, da contemporaneidade, quando fala de caminhos que se bifurcam numa floresta amarela, “two roads diverged in a yellow wood... to where it bent in the undergrowth”.
Frost, aliás, é tido como um conservador, o que não afeta a sua visão de um mundo pouco social e mais natural, ou, melhor: mais solitário, e menos demagógico. Talvez mais reflexivo do que discursivo. O que acaba, com seu silêncio onde a Natureza não fala mas comunica, sendo muito parente de doutrinas como o taoísmo.
Continuando o caminho da leitura, encontro a palavra “campanário” repetida algumas vezes, e o ar totalmente rural do texto de Heidegger me levam àquela doce interpretação de Edgar Allan Poe, em um de seus textos humorísticos, “O diabo no campanário”, aliás, belissimamente lido por Arthur Nestrovsky em “Debussy e Poe”, e que parece ser uma bela sátira da ordem puritana da sociedade germânica – no caso, holandesa.
Curiosamente. Caminhos se bifurcam com fontes. Inesperadamente.
No quinto parágrafo, reparem: há um forte apelo criado pela combinação de “lentidão” e “constância”, com que o filósofo alemão descreve a sagacidade do crescimento natural. A “lentidão e constância” com que a vida cresce, e que destoa tanto das exigências capitalistas do nosso consumo.
Aqui temos uma primeira leitura que nos põe de acordo com o taoísmo. Afinal, Laozi não se fartou, ou talvez tenha se fartado, com 81 poemas, em descrever essa mesma lentidão e graciosa constância com que o “Caminho” se faz. O que imitamos ou recuperamos em nossas aulas e práticas de “tai ji”?...
No mesmo parágrafo, lembro-me dos conceitos de “yin” e “yang”, estampados em: “(...) somente se o homem for disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz”. A terra e o céu, “yin” e “yang”, as duas faces do movimento do crescimento do homem e da vida na Terra, ou no Céu...
Também no sétimo parágrafo estão presentes Laozi e um poeta T´ang, chamado Sikong Tu (司空圖). “O Simples (com maiúscula) guarda o enigma do que permanece e do que é grande”.
Por fim, é notável que o filósofo tenha escolhido a forma poética de filosofar, mais ou menos tocante à filosofia da Ásia, embora sem usar o verso e a aliteração. Mas isso já está bastante explicado em seu livro “A caminho da linguagem”, de 1959, onze anos posterior a “O Caminho do campo”. A poesia como fonte de transmissão do Verdadeiro também já havia sido explorada com respeito por Saint-John Perse, ganhador do Prêmio Nobel de 1960, e sobre isso o seu “Discurso de Estocolmo” é lapidar.
"Não temas, diz a História, levantando um dia a sua máscara de violência”, assim diz o discurso de Perse, em 60. E estamos, agora, em 2019, em condições de ouvir essa frase conciliatória, com a mão levantada, dando a mão à “Divindade asiática no mais forte da sua dança destruidora”?...
Perse, Guimarães Rosa, principalmente em seu épico “Grande sertão: veredas”, e Martin Heidegger foram alguns dos que compreenderam a linguagem poética como veículo da Verdade do Ser.
Referências
Paulo de Tarso Cabrini Jr. é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (Campus Avaré), colaborador da Faculdade EBRAMEC, professor da Faculdade de Direito OAPEC, doutor em Letras pela Unesp/Assis, área de concentração “Literatura e Vida Social” e autor de trabalhos que versam sobre poesia e literatura em perspectivas poéticas e ensaísticas.
FROST, Robert. In : The Aesthetic Values of Robert Frost: Taoist Beauty in his Poetry. Disponível em: http://edu.wanfangdata.com.cn/Periodical/Detail/hwyy-z201112115. Acesso em: 08/07/2019.
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Disponível em: http://abdet.com.br. Acesso em: 08/07/2019.
______. O caminho do campo. Disponível em: http://caminhodocampo.blogspot.com. Acesso em: 08/07/2019.
LAOZI. Dao De Jing, o livro do Tao. São Paulo: Mantra, 2017.
NESTROVSKY, Arthur. Debussy e Poe. Porto Alegre: L&PM, 1986.
PERSE, Saint-John. Discurso de Estocolmo. Disponível em: http://theprovince.blogspot.com/2009/03/poesia-discurso-de-estocolmo-saint-john.html. Acesso em: 08/07/2019.
POE, Edgar A. Ficção completa, poesia e ensaios. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965.
ROSA, João G. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
SIKONG TU (司空圖). Vinte e quatro estilos de poesia (二十四詩品). Disponível em: https://zh.wikisource.org/zh-hant/二十四詩品. Acesso em: 08/07/2019.

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